Experimento de arrepiar: o cientista soviético que criou cães de 2 cabeças
Colaboração para o UOL
27/08/2024 12h00
Cães de duas cabeças podem parecer uma ideia impossível saída de um filme de ficção científica até mesmo em 2024, mas o médico russo Vladimir Demikhov realizou ainda nos anos 1950 experimentos com animais que considerou bem-sucedidos e resultaram justamente nestas criaturas híbridas.
Uma demonstração de arrepiar
Demikhov iniciou seus transplantes de cabeças em cachorros no ano de 1954. Em 1959, ele recebeu a revista americana Life para registrar o resultado de seus experimentos.
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O experimento tinha uma "cabeça convidada" e um "cachorro anfitrião". Quando o fotógrafo Howard Sochurek entrou na sala de cirurgia, ouviu os latidos de um cãozinho com orelhas caídas e focinho pontudo: era a cadela Shavka de cerca de nove anos. Ela seria o que ele chamou de "cabeça convidada". O chamado "cachorro anfitrião" era o vira-lata Brodyaga ("vagabundo", em russo).
A reportagem da revista Life descreveu o procedimento de três horas e meia em detalhes realistas. "Primeiro, eles fizeram uma incisão na base do pescoço do cachorro grande, expondo sua veia jugular, a aorta e um segmento da coluna vertebral. O corpo flácido de Shavka foi colocado na mesa de cirurgia ao lado de Brodyaga. [...] Depois, os dois cirurgiões suturaram a pele dos dois cachorros e a operação terminou", escreveu o correspondente em Moscou, Edmund Stevens.
Aquele não era o primeiro cão de duas cabeças de Demikhov: ele já havia realizado o experimento 23 vezes. Brodyaga e a cabeça de Shavka sobreviveram quatro dias. Mas outros transplantes do médico chegaram a viver por 29 dias.
À revista, ele justificou que seu objetivo era demonstrar ser possível transplantar tecidos e órgãos saudáveis. E relatou um plano então futurista, mas talvez profético.
Começaremos formando um banco de tecidos. Com o tempo, ele incluirá todas as partes concebíveis da anatomia humana: córneas, globos oculares, fígados, rins, corações e até membros. Tudo será mantido em refrigeração. Quando estivermos totalmente preparados, uma vítima de acidente será trazida com uma lesão em algum órgão essencial que, normalmente, seria fatal. Como a pessoa iria morrer de qualquer forma, ela não tem absolutamente nada a perder. E trataremos de fornecer a ela o órgão necessário do nosso banco. Se o transplante tiver sucesso, ela irá viver. Se não, boa sorte na próxima vez.
Vladimir Demikhov
Experimento causou choque. "Sinto emoções desencontradas quando vejo as imagens, pois são animais que, resumidamente, foram torturados", disse à BBC o médico Igor E. Konstantinov.
O que veio antes
Considerado o pai dos transplantes de órgãos, Demikhov desenvolveu técnicas e foi pioneiro em cirurgias que são realizadas ainda hoje. Segundo registros de dois respeitados periódicos científicos —European Heart Journal, publicado pela Sociedade Europeia de Cardiologia, e Annals of Thoracic Surgery, da Sociedade de Cirurgia Cardiotorácia dos EUA—, Demikhov implantou o primeiro dispositivo de assistência cardíaca em 1937, realizou o primeiro transplante de coração e pulmão em 1946 em animais e o primeiro de fígado em 1948, além de outros seis procedimentos complexos de maneira inédita.
Demikhov teve uma trajetória pessoal e profissional nada ortodoxa. Ele nasceu em 31 de julho de 1916 em Kulikovsky, ainda durante o Império Russo, de uma família de camponeses. Perdeu o pai na Guerra Civil Russa por volta dos três anos e foi criado apenas pela mãe, que teria dado a ele uma boa educação formal.
Ainda adolescente, teria começado a se interessar pelo sistema circulatório de mamíferos. Também se interessou pelo trabalho do fisiologista Ivan Pavlov no condicionamento de reflexos de cães, descreveu Konstantinov em artigo do Annals of Thoracic Surgery de 1998.
Em 1934, o jovem Demikhov entrou na Universidade Estadual de Voronezh, onde três anos depois ele criaria o primeiro coração artificial do mundo — totalmente mecânico, que ele conseguiu implantar em um cachorro que sobreviveu duas horas após a cirurgia, conforme registra o periódico da Sociedade Americana de Órgãos Internos Artificiais (ASAIO Journal). A descrição do procedimento, que ele realizou ainda como estudante do quarto ano, foi publicada pela primeira vez pela universidade em abril de 1938 e apresentada em conferência médica no mês seguinte.
Demikhov era uma estrela em ascensão. Ele logo acabou se transferindo a Universidade Estatal de Moscou, em que se formou na área de biologia em 1940.
Em 1941, o jovem cientista foi recrutado pelo Exército Vermelho para servir como especialista forense e patologista do front soviético na Segunda Guerra Mundial. Só após 1945 ele retornaria para Moscou — e retomaria suas pesquisas.
Demikhov não era apenas um cirurgião de entendimento singular do sistema circulatório. Tinha a mente curiosa de um mecânico e o senso de urgência de um veterano de guerra.
Considerando suas origens, é muito difícil entender por que ele teve este impulso incrível para realizar transplantes, apesar de todo o desastre econômico do seu país e da horrível guerra mundial, que recém havia terminado. Só posso imaginar que ele tenha sido criado em uma sociedade muito utópica, na época em que o dinheiro significava muito pouco e se tentava fazer algo grandioso pelo seu país, em benefício da humanidade. Acredito que, no final, era só isso que importava.
Igor Konstantinov, em entrevista à BBC.
Denunciado como charlatão
Logo após o experimento com cão, o cientista demonstrou outro feito. Em setembro de 1959, dois meses depois da publicação da matéria sobre o cão de duas cabeças, Demikhov demonstrou durante o 18º Congresso Internacional de Cirurgia em Munique, na Alemanha, como implantar uma bomba intratorácica em um cachorro, equipamento que funcionava como coração artificial.
Os funcionários o denunciaram como charlatão e seus experimentos foram proibidos. Ele precisou trabalhar no Departamento de Cirurgia que era dirigido por Alexander Vishnevsky [1906-1975], cirurgião-chefe do exército soviético, independente do Ministério da Saúde da URSS. Ele foi ironicamente protegido pelo exército soviético, para poder continuar com seus experimentos.
Igor Konstantinov
Em 1962, Demikhov publicou sua tese de doutorado simultaneamente nos EUA, na Alemanha e na Espanha e cunhou o termo "transplantologia". No entanto, ele ainda estava vivendo à frente de seu tempo: o primeiro transplante de coração do mundo só seria realizado em humanos com sucesso em 1967, pelo sul-africano Christiaan Barnard. Barnard, por sua vez, era fã do trabalho de Demikhov e chegou a visitar os laboratórios do russo que chamou de "pai do transplante de coração e pulmão", em 1960 e 1963. Um ano depois da conquista, em 1968, o cirurgião Euryclides Zerbini realizaria o primeiro procedimento do tipo no Brasil.
Em 1998, ano em que morreu, a Rússia reconheceu Vladimir Demikhov com a Ordem por Serviços à Pátria. "Muitos, muitos pacientes pelo mundo se beneficiaram, direta ou indiretamente, dos seus experimentos extremamente pioneiros. Acredito que o mais importante, provavelmente, foi que ele conseguiu convencer as pessoas que o seguiam de que o impossível era possível", concluiu Konstantinov à BBC.