Saída dos Estados Unidos da OMS pode impactar combate ao HIV: 'Desastroso'

A decisão do presidente Donald Trump de retirar os Estados Unidos da OMS (Organização Mundial da Saúde) pode impactar o funcionamento de programas essenciais da organização, como os de combate a tuberculose, poliomielite, HIV/Aids e emergências de saúde global. Especialistas ouvidos pelo UOL explicaram os principais riscos trazidos pela saída dos EUA da instituição referência de saúde pública no mundo.
O que aconteceu
Os EUA são os maiores doadores da OMS e fornecem recursos vitais que sustentam muitas de suas operações. Além de ser o maior financiador da OMS, com estimativa de doação de US$ 500 milhões, os norte-americanos também apoiam diversos programas de saúde pública, principalmente em regiões mais vulneráveis. "Com a saída dos EUA, esses financiamentos estão em risco", avalia o infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
Os EUA contribuem com cerca de 18% do financiamento para a OMS. O país financia 75% do programa da OMS para HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis e mais da metade das contribuições para combater a tuberculose. Em 2020, Trump já havia tentado retirar os EUA da OMS, mas a medida foi revertida pelo presidente Joe Biden em 2021.
Programas são cruciais principalmente no combate a doenças infecciosas, como poliomielite, tuberculose e malária. "O corte de recursos pode impactar principalmente os países de baixa renda que dependem desses financiamentos e da chegada desses tratamentos para essas doenças infecciosas", diz Julio Croda.
Os EUA são um grande financiador na luta contra o HIV. O principal programa é o PEPFAR (Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para a Luta contra HIV/Aids). O programa foi criado em 2003 pelo governo dos Estados Unidos para controlar a pandemia de HIV até 2030 e tem parceria com mais de 50 países. De acordo com informações divulgadas pelos EUA, o PEPFAR tem apoiado serviços abrangentes de prevenção, cuidados e tratamento a milhões de pessoas em todo o mundo através do tratamento antirretroviral.
Aumento de vulnerabilidades sanitárias. "Esse programa pode ser descontinuado e milhares de pessoas podem parar de receber o antirretroviral e a assistência de saúde necessária. A situação é preocupante principalmente para países africanos, como Quênia, Uganda e Nigéria", explica o pesquisador da Fiocruz.
A saída dos EUA da OMS também pode impactar na resposta global a uma emergência de saúde pública, como aconteceu na covid-19. Para Croda, essa resposta pode ser enfraquecida no caso de uma nova pandemia, surtos ou doenças. "A gente já não teve uma boa comunicação para a pandemia da covid-19, que era algo unificado para os países membros da OMS. Imagine agora um país com a importância global como os EUA, discordando publicamente da OMS, como isso vai acontecer em termos de implementação de saúde pública?", questiona.
Anúncio é desastroso, diz ex-diretora-geral adjunta da OMS

Saída dos EUA da OMS afeta os recursos, mas também capacidade técnico-científica. Essa é a avaliação de Mariângela Simão, ex-diretora-geral adjunta da Organização Mundial de Saúde, e atual diretora-presidente do Instituto Todos pela Saúde. "É desastroso você pensar que um país hoje entenda que ele sozinho dá conta de tudo, mas não dá. O mundo está globalizado. As redes de logística, de produção de medicamentos e vacinas são globalizadas", diz.
"Você compra aquela tampa de borracha que vai no frasco da vacina em um país, o frasco da vacina em outro, a matéria-prima em outro. É assim que funciona o mundo hoje. E os Estados Unidos acham que podem resolver todos os problemas sozinhos? Ou que vão criar uma organização global de saúde, outra que não seja no sistema multilateral", questiona Mariângela Simão.
Ela relembra a que a pandemia da covid-19 precisou de um esforço internacional, coordenado pela OMS. "Nesses casos, todo mundo tem que estar envolvido, porque é uma doença de transmissão respiratória, que daí não tem fronteira. Sim, a OMS tem problemas, ninguém nega isso, mas isso se resolve na conversa com os países, na negociação. O mundo tem problema, a saúde mundial tem problema. Mas os EUA ditarem as regras sozinhos em relação à saúde global é inconcebível".
A médica sanitarista alerta que a retirada dos EUA pode prejudicar a vigilância global de doenças. Mas não acredita que decisão dos EUA possa desencadear um efeito manada. "Acho que não, tem governos de esquerda e de direita em vários lugares do mundo. Por exemplo, a Itália, que é governada pela direita, não tem esse movimento de retirada da OMS, porque entende o valor da instituição", disse Simão.
Trump barganha com a vida das pessoas ao anunciar a saída dos EUA da OMS. A declaração é da médica infectologista Luana Araújo no UOL News, do Canal UOL, nesta terça-feira (21).
A pandemia, de novo, mostrou isso e este sujeito [Donald Trump] estava lá no começo da pandemia da covid-19. Então, para mim, é sempre muito impactante, muito frustrante que pessoas que sejam capazes de ocupar esses lugares de poder, tem uma capacidade cognitiva limitada quando se trata dessa questão da saúde pública e, mais do isso, tenham uma noção tão inflexível de moral que permitam jogar com a vida dessas pessoas em troca de dinheiro ou posição de posição política.
Luana Araújo, médica e infectologista
Brasil será impactado?
Mariângela Simão diz que ainda é cedo para fazer essa avaliação, mas ressalta que o sistema de saúde do Brasil é forte. "Tem capacidade própria para responder", afirma. Ela avalia que é preciso aguardar se os decretos de Trump vão citar a Organização Pan-Americana da Saúde. "É uma instituição mais antiga que a OMS e mais importante para as Américas, seria um desastre para a região".
Julio Croda explica que há regiões que são mais vulneráveis. "Aqui temos o SUS e o Brasil não depende de nenhum programa específico dos EUA, por isso a saída não tem tanto impacto para o Brasil do ponto de vista de políticas públicas. Mas EUA e Brasil são parceiros científicos há muitas décadas, principalmente na área de doenças infecciosas e, se outros financiamentos forem cancelados, aí sim, o impacto será grande no Brasil", alerta.
China pode assumir protagonismo. O país garantiu que seu apoio à agência seria mantido. "O papel da OMS deve ser fortalecido, não enfraquecido", disse o porta-voz da diplomacia chinesa Guo Jiakun, acrescentando que "a China, como sempre fez, apoiará a OMS no cumprimento de suas responsabilidades".
"Países como a China podem aumentar sua influência na OMS, isso pode alterar as prioridades da organização e o seu direcionamento, porque os EUA sempre tiveram voz e participação ativa na OMS. Se a China colocar mais recursos, ela pode ter mais influência e estabelecer outras prioridades dentro da organização", destaca Croda.
O que disse Trump

Os EUA são um dos fundadores da organização criada em 1948. A saída foi anunciada na segunda-feira (20), no primeiro dia do mandato de Trump.
O novo presidente justificou a decisão alegando de má gestão da OMS e influência política da China. Hoje, ela seria de US$ 500 milhões, contra menos de US$ 100 milhões de Pequim. "Vocês acham isso justo?", questionou o republicano.
O regimento diz que os Estados Unidos terão 12 meses para concluir o processo de desvinculação. "A OMS nos enganou", acusou o presidente ao assinar o decreto, que também faz um apelo à identificação de "parceiros americanos e internacionais confiáveis e transparentes para assumir as atividades necessárias anteriormente realizadas pela OMS".
Respostas a ameaças de doenças infecciosas. O novo governo Trump também anunciou planos para revisar e rescindir a iniciativa de saúde da administração de Joe Biden conhecida como Estratégia de Segurança da Saúde Global 2024, projetada para responder a ameaças de doenças infecciosas, "o mais rápido possível".
OMS espera que Trump reconsidere saída dos EUA da entidade
A Organização Mundial da Saúde informou esperar que o novo presidente dos Estados Unidos reconsidere a decisão. "A OMS desempenha um papel crucial na proteção da saúde e da segurança da população mundial, incluindo de norte-americanos, abordando causas profundas de doenças, construindo sistemas de saúde mais fortes e detectando, prevenindo e respondendo a emergências em saúde, incluindo surtos, geralmente em locais perigosos, onde outros não podem ir," disse a agência em nota publicada nesta terça-feira (21)
A OMS destacou que os Estados Unidos sempre participaram na definição e gestão dos trabalhos da agência, juntamente com outros 193 estados-membros. "Por mais de sete décadas, a OMS e os Estados Unidos salvaram incontáveis vidas e protegeram norte-americanos e toda a população global de ameaças à saúde. Juntos, eliminamos a varíola e levamos a poliomielite à beira da erradicação. Instituições norte-americanas contribuíram e foram beneficiadas por essa adesão como Estado-membro da OMS", argumentou a organização.
"Esperamos que os Estados Unidos reconsiderem e esperamos poder engajar em um diálogo construtivo para manter a parceria entre o país e a OMS, para o benefício da saúde e do bem-estar de milhões de pessoas em todo o mundo", concluiu a nota. Em Genebra, o porta-voz da OMS citou exemplos como a erradicação da varíola e a quase erradicação da poliomielite. Em 2023, os Estados Unidos foram o maior doador individual da OMS, contribuindo com 18% de todo o orçamento.
A União Europeia espera que decisão seja revogada. Eva Hrncirova, porta-voz da Comissão Europeia, afirmou que o bloco espera que a decisão ainda esteja em revisão. "Recebemos com preocupação o anúncio de retirada dos Estados Unidos da OMS e confiamos que a administração norte-americana levará tudo isso em consideração antes da retirada formal", disse durante o briefing diário a Comissão Europeia, segundo a agência de notícias Reuters.
*Com Reuters e AFP
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