Como enfermeira foi de 'maior assassina' a possível inocente na Inglaterra

A enfermeira Lucy Letby, 35, condenada à prisão perpétua pelo assassinato de recém-nascidos no hospital em que trabalhava, terá seu caso revisto na Justiça depois que um comitê de especialistas médicos questionou as provas apresentadas contra ela.

O que aconteceu

Letby foi condenada pelo assassinato de sete bebês e pela tentativa de assassinato de outros sete em agosto de 2023. Segundo reportagem do jornal britânico The Guardian, dois dos bebês que sobreviveram têm danos cerebrais graves. Os crimes teriam sido cometidos entre 2015 e 2016 no Countess of Chester Hospital, no norte da Inglaterra, onde ela trabalhou.

Durante o julgamento, a enfermeira foi acusada de ter injetado ar no sangue de recém-nascidos. Ela também aplicava doses altas de insulina ou dava leite em excesso para bebês prematuros ou doentes que estavam na UTI, conforme a acusação, que não chegou a uma conclusão sobre a motivação.

Letby sempre se declarou inocente. Durante a investigação, a polícia encontrou um bloco de anotações na casa de Lucy que dizia: "Eu sou uma pessoa horrível e má. Eu sou má e fiz isso".

Médico suspeitou do comportamento da enfermeira e levou o caso à administração do hospital. Segundo a revista People, Ravi Jayaram disse ter visto Lucy ao lado de uma criança com o tubo de respiração desalojado, observando os níveis de oxigênio do bebê caindo e "sem fazer nada". Na ocasião, o médico interveio, mas o bebê morreu três dias depois.

Número de mortes subiu "inexplicavelmente" com a chegada de Lucy ao hospital, diz a acusação. As mortes eram descritas como "inexplicáveis" ou "inesperadas". Em 2017, a polícia foi alertada novamente sobre o suposto comportamento estranho de Lucy. Em maio, foi aberta uma investigação sobre a morte dos bebês, e o julgamento começou em outubro de 2022.

Como reportagem ajudou enfermeira

Em um julgamento que durou dez meses, o caso provocou fortes reações da mídia. Durante o processo, a enfermeira foi descrita por parte da imprensa como a "maior assassina de crianças na história moderna" da região, conforme descreveu a agência de notícias AFP. O Daily Mail escreveu: "Ela [Lucy] abriu a porta para o Inferno, e o fedor do mal domina a todos nós".

O The Guardian publicou mais de cem histórias sobre o caso. O jornal britânico, um dos principais da região, chamou Lucy de "uma das mulheres assassinas mais notórias do século passado".

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Em 2024, a revista norte-americana The New Yorker publicou um perfil de Letby, e o texto teve relevância importante no processo. A reportagem detalha as mortes pelas quais a enfermeira foi condenada e diz que "a aceitação coletiva da culpa de Lucy foi absoluta".

A New Yorker descreve a enfermeira como "uma pessoa psicologicamente saudável e feliz". A reportagem diz que Lucy tinha "muitos amigos íntimos", e que seus colegas de trabalho elogiavam seu cuidado e atenção. "Isso é completamente sem precedentes, pois não parece haver nada a dizer. Não encontramos realmente nada em seu passado que seja diferente do normal", diz a revista, citando um detetive envolvido na investigação.

A revista teve acesso a registros a mais de sete mil páginas de processo. entrevistas policiais, mensagens de texto e registros internos do hospital em que Lucy teria cometido os crimes. "Desde sua prisão, Lucy não fez quaisquer comentários públicos, e uma ordem judicial proibiu a maioria das reportagens sobre o seu caso", diz o texto.

O caso contra ela ganhou força por conta de uma tabela compartilhada pela polícia que circulou amplamente nos meios de comunicação. No eixo vertical, estão descritos os "eventos suspeitos", que incluem, por exemplo, a morte de recém-nascidos no hospital por turno. No eixo horizontal, estão os nomes dos enfermeiros que atuaram na unidade naquele período, com um X ao lado de cada evento suspeito ocorrido durante determinado plantão. Lucy é a única enfermeira com uma linha ininterrupta de X abaixo do nome. Veja abaixo:

Porém, segundo a The New Yorker, a tabela "não leva em conta quaisquer outros fatores que influenciam a taxa de mortalidade na unidade". A linha contínua abaixo do nome de Lucy "deu uma impressão de clareza e coerência matemática, desviando a atenção de outra possibilidade: a de que nunca tinha havido qualquer crime", diz a revista.

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As instalações do hospital onde Lucy trabalhava são, segundo a revista, possíveis motivos para que as mortes tenham ocorrido ali. A unidade para os recém-nascidos é "desatualizada e apertada", conforme a reportagem. Ainda segundo o texto, o saneamento do local não era satisfatório, oferecendo riscos de infecção aos bebês. No tribunal, Lucy alegou que as mortes poderiam estar relacionadas aos supostos problemas de encanamento no hospital. "Costumávamos ter esgoto saindo das pias [e] saindo no chão do berçário", afirmou, dizendo também que o fato de os funcionários não conseguirem lavar as mãos poderia ser "um problema contributivo".

A equipe também estava sobrecarregada. Sete pediatras seniores, chamados de consultores, faziam rondas na unidade, mas apenas um era neonatologista —especialista no cuidado de recém-nascidos. Um inquérito sobre um recém-nascido que morreu em 2014, um ano antes das mortes pelas quais Lucy foi acusada, descobriu que os médicos tinham inserido um tubo respiratório no esôfago do bebê, em vez de na traqueia, ignorando vários indícios de que o tubo estava mal colocado. Trecho de reportagem da revista The New Yorker

Agora, uma possível reviravolta pode acontecer na Justiça. Um artigo científico coescrito em 1989 pelo médico canadense Shoo Lee foi usado pela defesa de Lucy no primeiro julgamento. Na última semana, o próprio Lee apresentou as conclusões de um painel de 14 especialistas independentes, que avaliaram o caso e questionaram as evidências que incriminaram a enfermeira. "As provas usadas para condená-la são equivocados e isso, para mim, é um problema", disse o médico durante uma entrevista coletiva.

Não encontramos nenhum assassinato. Em todos os casos, as mortes ou lesões ocorreram por causas naturais ou simplesmente cuidados médicos precários. Shoo Lee, médico usado pela defesa de Lucy Letby

A comissão independente responsável pela análise das provas tem competência para encaminhar o caso para nova apelação. Os advogados da enfermeira dizem que houve um erro judicial e apresentaram um recurso à instância de revisão criminal, que informou que o processo levará tempo devido ao "grande volume de provas".

Em outubro de 2024, os tribunais britânicos rejeitaram novamente um recurso interposto por Lucy. Após a revisão por parte da comissão e o novo recurso, os advogados que Lucy esperam que a enfermeira seja declarada inocente.

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*Com informações da AFP e de matéria publicada em 22/08/2023.

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