'Com Carlo no coração': canonização é adiada, e eles vão a funeral do papa

Os sinos das igrejas estavam tocando quando a brasileira Larissa Fernandes, 29, desceu do ônibus em Assis, na Itália. "Que recepção calorosa", pensou, em tom de brincadeira. Só mais tarde ela soube o verdadeiro motivo da celebração: o papa Francisco havia acabado de reconhecer o segundo milagre atribuído ao beato Carlo Acutis, cujo corpo está no Santuário do Despojamento, em Assis.

Era dia 23 maio de 2024. A coincidência de estar na cidade justamente no dia do anúncio levou Larissa a decidir que iria voltar à Itália no ano seguinte, com o objetivo de acompanhar a cerimônia de canonização de Acutis, jovem italiano que fazia evangelização pela web e ficou conhecido como "padroeiro da internet".

A cerimônia estava prevista para acontecer no dia 27 de abril, na Praça São Pedro, em Roma, mas foi adiada após a morte do papa.

"Confesso que, na hora em que soube da suspensão, cheguei a repensar minha viagem para Roma, afinal foram meses me planejando para ver a canonização do Carlo. Mas depois entendi que, se foi assim, é porque Deus quis. Ele já sabia de tudo. Então, de alguma forma, quis que eu estivesse em Roma nesse momento tão importante", afirma Larissa.

Papa Francisco é velado na Basílica de São Pedro, no Vaticano
Papa Francisco é velado na Basílica de São Pedro, no Vaticano Imagem: REUTERS/Susana Vera

A social media, que mora em Taubaté (SP), diz que contou com a ajuda financeira de sua família e amigos para conseguir planejar a viagem. Ela embarcou para Roma na quarta-feira passada e pretende acompanhar o funeral do papa neste sábado.

Estou indo [para Roma] com o Carlo no coração, ainda quero passar em Assis, mas a viagem se tornou sobre o papa Francisco, que eu sempre admirei tanto. Ao invés de ir para a canonização de um amigo, agora vou para o sepultamento de outro. Larissa Fernandes

O Vaticano ainda não deu informações sobre quando o processo de canonização de Acutis deve ser retomado. O jovem, que morreu de leucemia aos 15 anos, em 2006, vai se tornar o primeiro santo millennial —pessoa nascida entre o início dos anos 1980 e o final dos anos 1990.

'Quando Jorge virou Francisco, ganhou meu coração'

Além da fé, papa Francisco, o beato Carlo Acutis e a própria Larissa têm pelo menos uma coisa em comum: a devoção a São Francisco de Assis, frade que viveu no século 12, conhecido por ter exercido sua vida religiosa na simplicidade e se dedicando aos pobres.

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Pela tradição católica, ao serem eleitos, os papas adotam um novo nome, que traz a mensagem que o líder religioso pretende imprimir ao seu papado. Nascido em Buenos Aires, na Argentina, em 1936, Jorge Mario Bergoglio se tornou o papa Francisco em 2013, aos 76 anos.

O nome foi escolhido pelo argentino como homenagem a São Francisco de Assis. Além de ter sido o primeiro pontífice da América Latina, ele foi o primeiro papa a escolher o nome de Francisco.

Papa Francisco participa de um almoço com os pobres depois de celebrar uma missa que marca o Dia Mundial dos Pobres da Igreja Católica Romana, em 2019
Papa Francisco participa de um almoço com os pobres depois de celebrar uma missa que marca o Dia Mundial dos Pobres da Igreja Católica Romana, em 2019 Imagem: REUTERS/Guglielmo Mangiapane

Em abril do ano passado, por ocasião do oitavo centenário do "dom dos estigmas" de São Francisco de Assis —marcas visíveis que apareceram no corpo do santo em 1224, nos mesmos lugares das chagas de Jesus na cruz —, o papa afirmou que "um discípulo de Jesus encontra no estigmatizado São Francisco um espelho de sua identidade".

"É por isso que o cristão é chamado a se dirigir de maneira especial aos 'estigmatizados' que encontra: os 'marcados' pela vida, que carregam as cicatrizes do sofrimento e da injustiça sofrida ou dos erros cometidos", afirmou ele na ocasião, segundo o site VaticanNews.

Na quinta-feira, a Santa Sé anunciou que, antes do sepultamento, o caixão de papa Francisco será acolhido por um grupo de pobres e necessitados, nos degraus que levam à Basílica papal de Santa Maria Maggiore, onde o corpo do pontífice será enterrado. O comunicado da Santa Sé reforça que "os pobres ocupam um lugar privilegiado no coração de Deus" e de Francisco.

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Larissa Fernandes veste camiseta em homenagem ao beato Carlo Acutis, na Praça de São Pedro, em Roma
Larissa Fernandes veste camiseta em homenagem ao beato Carlo Acutis, na Praça de São Pedro, em Roma Imagem: Arquivo pessoal

Acutis, por sua vez, nasceu na Inglaterra, morou a maior parte da vida em Milão, mas dizia que a cidade onde mais se sentia feliz era Assis, onde pediu para ser enterrado. Biografias relatam que o beato, inspirado na caridade de São Francisco, costumava pedir à babá um lanche extra para levar à escola: no caminho, entregava o sanduíche a pessoas em situação de rua.

Italiano de classe média alta, o adolescente também tinha o hábito de dar para os necessitados pares de tênis novos que ganhava de presente dos pais.

"São Francisco também é meu primeiro santo de devoção", afirma Larissa, que participa das atividades da ONG católica Missão Belém, cujo objetivo é acolher pessoas em situação de vulnerabilidade. "Então, quando Jorge decidiu se chamar Francisco, ganhou meu coração, assim como tudo que ele fez pelos jovens."

"É uma honra poder me despedir dele pessoalmente", diz ela, que teve a oportunidade de conhecer o papa no ano passado, quando participou de uma audiência geral, junto com o padre Márlon Múcio, que tem uma doença rara e é idealizador da Casa de Saúde Nossa Senhora dos Raros, em Taubaté (SP).

Junto com o padre Márlon e um grupo de brasileiros, ela também foi para Assis, onde a equipe planejava gravar as cenas de um documentário sobre a vida do sacerdote, que tem uma condição que afeta uma a cada 1 milhão de pessoas. O plano era gravar no Santuário do Despojamento, onde está o corpo de Carlo, no dia 23 de maio.

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Corpo de Carlo Acutis no caixão usado para exposição, em Assis
Corpo de Carlo Acutis no caixão usado para exposição, em Assis Imagem: CNS/courtesia da Diocese de Assisi-Nocera Umbra-Gualdo Tadino

O que não eles não esperavam era que a data fosse coincidir com o anúncio do papa sobre o segundo milagre atribuído ao beato, coincidência que levou Larissa a querer conhecer mais sobre a vida de Acutis, que hoje ela considera um "grande amigo".

"Eu tinha ido para Roma com o objetivo maior de ver o papa, mas, pelas surpresas de Deus, ele aprovou o milagre do Carlo, e nossa viagem acabou se tornando sobre o Carlo. Agora, a história se inverte", diz ela.

Na capital italiana pela segunda vez, a social media disse que levou para a viagem "a leveza de Francisco e o amor de Carlo". "O encontro entre eles dois no céu deve ter sido épico", diz.

'Não preciso ver o resultado do exame'

Geovana Mecatti Domingos Bortman, 41, também planejava participar da cerimônia de canonização do beato Carlo Acutis neste domingo. Junto com o marido, Daniel Bortman, ela queria homenagear e agradecer a intercessão do "santo millennial" pela saúde da filha mais nova do casal.

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"Quando a Alice tinha entre 3 e 4 anos, foi diagnosticada com a doença de Legg-Calvé-Perthes, e a médica já pediu para ela parar de correr, o que foi muito desafiador para uma criança", relembra a zootecnista.

Também conhecida como doença de Perthes, a condição leva à destruição do osso do quadril, gerando dores, falta de mobilidade e dificuldade de andar. Segundo Geovana, o tratamento indicado para a criança envolvia três meses usando gesso, da cintura ao tornozelo, e, em seguida, cirurgia.

"Quando saiu o diagnóstico da Alice, fiz um monte de promessas. Pensei 'vou levar a Alice no Santuário de Nossa Senhora Aparecida, vou cozinhar marmita e dar aos pobres', fiz uma lista de coisas que eu faria", conta ela.

Geovana, Daniel e as filhas Manuela e Alice (à direita)
Geovana, Daniel e as filhas Manuela e Alice (à direita) Imagem: Arquivo pessoal

"Um dia, eu estava em viagem conversando com Deus, e falei 'eu preciso de um milagre para a minha filha e eu não sei mais o que fazer, então o senhor me fala o que eu tenho que fazer que eu faço'."

Geovana diz que, quando terminou a oração, a lembrança de Carlo veio imediatamente à sua cabeça. Ela mora em Campo Grande, onde ocorreu o primeiro milagre atribuído à intercessão do adolescente: a cura de uma criança de uma doença congênita que afetava o pâncreas.

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"Quando lembrei do Carlo, meu corpo esquentou, me arrepiei e comecei a chorar. E aí eu pensei que era isso, a Alice iria ser um milagre do Carlo e eu o ajudaria a se tornar santo."

Antes de o tratamento começar, a família solicitou novos exames, que apontaram que a menina não tinha mais Legg-Perthes. "Meu marido pegou o exame, me entregou e eu disse: 'Eu não preciso abrir, já sei o resultado'."

Em 2022, a família enviou documentos ao Vaticano para que o milagre fosse reconhecido. "O padre Marcelo Tenório [responsável pela Paróquia São Sebastião e pela Capela do Milagre, em Campo Grande, onde aconteceu o primeiro milagre] acredita que eles estavam avaliando, porque pediram os exames de acompanhamento. Por isso, a gente acredita que eles conhecem a história da Alice", diz Geovana.

A segunda cura atribuída a Carlo Acutis, reconhecida pelo papa Francisco em maio de 2024, foi de uma jovem da Costa Rica que sofreu um traumatismo craniano grave em 2022. Ela estava internada com pouca chance de sobrevivência, mas, depois das orações da mãe no túmulo do beato, foi curada.

Após a morte do papa, Geovana diz que remarcar as passagens e a hospedagem em Roma seria financeiramente inviável. "Como comprei promocional, é impossível, ficaria muito caro remarcar", afirma ela.

Agora, o roteiro da família envolve passar o aniversário de Carlo Acutis — o adolescente nasceu no dia 3 de maio de 1991 — no Santuário do Despojamento, em Assis. "Fiquei triste por não poder acompanhar a canonização do Carlo, mas ainda vamos até Assis agradecê-lo e vamos participar do funeral do santo papa, que foi um papa maravilhoso", diz Geovana.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Diferentemente do informado em versão anterior deste texto, São Francisco de Assis viveu no século 12, não no século 18. A informação foi corrigida.

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