Marido esfaqueado, tiros de drone: os perigos na busca por ajuda em Gaza

Para alimentar suas famílias, civis na Faixa de Gaza têm enfrentado risco de morte ao tentar acessar os pontos de distribuição de ajuda humanitária internacional na região, segundo relata uma mãe palestina que teve o marido esfaqueado em um desses centros.

O que aconteceu

Em Gaza, famílias passam fome e pontos de distribuição de ajuda humanitária se tornaram locais violentos, diz Assmaa Adbo Eldijan, 38. A palestina, que cresceu no Brasil entre os 4 e os 20 anos, vive com o marido e os quatro filhos na cidade de Deir al Balah, no centro de Gaza. Sem a entrada de ajuda humanitária onde vivem, o companheiro de Assmaa viajou até Rafah, ao sul, para tentar buscar alimento e levar à família.

Ao receber um saco de farinha, marido de Assmaa foi esfaqueado nas costas. Ela explica que, para tentar chegar até os poucos pontos de distribuição de ajuda que ainda operam em Gaza, muitos precisam caminhar por horas, sob sol forte e poeira. Outros dormem de quatro a cinco dias próximos aos centros e, quando finalmente chegam os caminhões com os mantimentos, "todos já estão desesperados".

Ele levou uma facada nas costas tentando pegar um saco de farinha, porque, lá, é morte. Mas, graças a Deus, hoje está bem. (...) Nesses pontos, pessoas vão com faca na mão e até martelo. Todo mundo está desesperado para conseguir pegar qualquer ajuda humanitária que chega, que é muito pouco perto da necessidade das pessoas que estão aqui. Assmaa Adbo Eldijan, em entrevista ao UOL

 Assmaa Adbo Eldijan, de 38 anos, que viveu 16 anos no Brasil
Assmaa Adbo Eldijan, de 38 anos, que viveu 16 anos no Brasil Imagem: Arquivo pessoal

Bombardeios, fome e humilhação "afetam emocional" de moradores, diz Assmaa. "Tem pessoas passando fome por dois, três dias, e, quando conseguem comer, é uma vez no dia", conta. "Por isso, quem quiser falar sobre o povo de Gaza hoje, deve saber que é um povo oprimido, sofrido, e muitas vezes sem discernimento. Diante da fome e de tudo o que está acontecendo, o certo e o errado já se misturou, está tudo muito ruim", ressalta.

Tiros de drones israelenses

Além da disputa desesperada por alimentos, civis são atingidos por disparos de drones israelenses em centros de ajuda, diz palestina. Segundo ela, os dispositivos aéreos atiram a esmo contra pessoas no entorno dos pontos de distribuição. "Civis morrem tentando conseguir comida, ou precisam fugir, correr, esmagar outras pessoas", relata.

Nas últimas semanas, centenas de pessoas foram mortas por disparos do Exército Israelense próximos a locais de distribuição de ajuda, segundo autoridades palestinas e organizações internacionais como a Cruz Vermelha. Já Israel tem anunciado a morte de líderes e aliados do Hamas, e negado os ataques contra civis.

Continua após a publicidade

Meu marido, todas as vezes que tentou conseguir ajuda humanitária, viu pessoas morrendo na frente dele. Às vezes, ele tentava ajudar, às vezes, só corria, para se proteger. Hoje, ele fala que, se precisarmos ir atrás dessas ajudas, é melhor ele ir sozinho, porque se for para correr risco de vida, que seja só um de nós. Assmaa Adbo Eldijan

Recém-criada GHF (Fundação Humanitária de Gaza), que hoje distribui alimentos no sul de Gaza, é operada por grupo privado que paga a empreiteiros norte-americanos para entregar mantimentos em áreas ocupadas por Israel na região. A organização começou a operar no fim de maio com apenas quatro pontos de distribuição, com quantidades de alimento consideradas insuficientes para suprir a escassez no território, que passou por um bloqueio de quase três meses imposto por Israel. Sob o sistema de distribuição anterior, coordenado pela ONU, havia cerca de 400 pontos (leia mais aqui).

GHF faz "situação desesperadora ficar pior", diz comunicado da Unicef divulgado hoje. Em declaração à imprensa sobre o assunto, o porta-voz da organização, James Elder, afirmou que esteve recentemente em Gaza e recebeu muitos relatos de mulheres e crianças feridas ao tentar receber alimentos, incluindo um menino atingido por um projétil de tanque, que morreu em decorrência dos ferimentos.

Vigilância e rotina transformada pela guerra

Além de viver sob medo e risco constante de bombardeios, moradores convivem com a vigilância de drones, acrescenta Assmaa. "Não tem um dia que não tem drones por perto. Enquanto estou falando agora, ouço eles passarem. Estão aqui 24 horas nos filmando, tirando fotos. A gente chama eles de "Zenena", por causa do barulho "zzzz" que faz. É perturbador. Não temos mais liberdade, tudo é espionado".

Palestina relata ainda rotina familiar completamente transformada pela guerra. Sem gás ou energia elétrica em casa, ela só cozinha à lenha os alimentos não perecíveis que consegue comprar com o dinheiro que recebe de amigos no Brasil, para onde tenta retornar com o marido e os quatro filhos, de idades entre 5 e 15 anos.

Continua após a publicidade

Quando precisa lavar as panelas sujas de lenha, ela usa areia. Para conseguir água em um poço perto da sua casa, que nem sempre vem limpa, são horas de espera, bem como para carregar o celular, mediante pagamento, em um estabelecimento local. "A vida aqui está muito difícil e desgastante. Tudo o que precisamos fazer é sob pressão, com muito esforço e leva horas", diz.

Hoje, para todo mundo em Gaza, só nos resta a fé. Se a gente não acreditasse na justiça de Deus, já teríamos enlouquecido há muito tempo. (...) Meu marido está totalmente esgotado, não só ele como todos os homens daqui, quando passam pela humilhação de pegar água, comida, de não conseguir trabalho. E meus filhos só sonham com um frango, uma comida boa. Já esqueceram o que é escola. Isso tudo está nos afetando muito.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.