Israel x Irã: como o conflito reacende debate evangélico sobre o apocalipse

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"E se o Apocalipse já estiver começando e a gente só não está percebendo?", pergunta o pastor André Valadão, líder global da Igreja Batista da Lagoinha, diante de milhões de seguidores no Instagram. Para ele, o livro bíblico escrito pelo apóstolo João já estaria se cumprindo e descrições como "estrelas caindo do céu" e "gafanhotos com rosto de homem" seriam, na verdade, drones, helicópteros e mísseis de guerra.
A recente escalada de tensão entre Israel e Irã, com a participação dos Estados Unidos, não apenas movimentou o noticiário internacional, mas reacendeu um antigo debate entre líderes evangélicos brasileiros: estariam os conflitos no Oriente Médio cumprindo profecias bíblicas sobre o fim dos tempos?
Nas redes sociais, Valadão sugere que estamos diante de eventos apocalípticos traduzidos em linguagem simbólica. Em outra publicação, declara: "Os sinais de que Jesus está voltando estão claros [...] O Rei está voltando". Ele também comentou o ataque de Israel ao Irã, alertando sobre a ameaça nuclear e convocando os cristãos à oração por Jerusalém.
O cumprimento da profecia?
Entre parte dos evangélicos, cresce o discurso de que os conflitos entre Irã e Israel seriam o cumprimento de profecias bíblicas. Essa leitura se baseia em textos de Ezequiel, Daniel e Apocalipse, que mencionam guerras, alianças entre nações e desastres como sinais do fim dos tempos.
Para o historiador e doutor em teologia André Daniel Reinke, autor do livro "Paixão por Israel: Judaização, sionismo cristão e outras ambiguidades evangélicas", essas associações são "oportunistas" e teologicamente frágeis. "Não há uma única profecia contra a Pérsia — atual Irã — na Bíblia. Pelo contrário, os persas eram aliados de Israel, como no caso de Ciro, chamado 'Ungido do Senhor'.
Reinke lembra que o Irã foi aliado comercial de Israel até 1979, antes da Revolução Islâmica. O que antes podia ser visto como aliado, agora é tratado por setores evangélicos como inimigo ou fim dos tempos.
Esse tipo de leitura se fortaleceu com o avanço do sionismo cristão, movimento de apoio teológico de evangélicos ao Estado de Israel. "Uma vez que há apoio ao Estado, guerras contra ele passam a ser interpretadas como sinais do Armagedom", explica o teólogo.
Para ele, essa "paixão" por Israel vem menos da geopolítica e mais de uma identificação com a Bíblia. "O evangélico vê em Israel a mesma terra e narrativa bíblica que ama. A identificação é simbólica." Mas Reinke adverte: quando essa conexão se transforma em leitura profética literal, os riscos se multiplicam. "Afinidades políticas e visões de mundo influenciam fortemente as interpretações. A margem de especulação é grande", explica.

A guerra e o apocalipse: uma leitura evangélica
Na tentativa de André Valadão de ligar conflitos entre Israel e Irã como sinais do Apocalipse, ele chega a afirmar que passagens como "estrelas caindo do céu" e "gafanhotos com rosto de homem" podem descrever mísseis ou drones modernos — visões proféticas acessíveis apenas a quem, segundo ele, tem "discernimento espiritual".
Esse tipo de leitura apocalíptica literalista — popularizada por obras como Deixados para Trás — entusiasma fiéis, mas preocupa estudiosos. Para Reinke, há uma clara "fetichização do Apocalipse". "Tragédias geram engajamento. Há pastor vendendo curso de sobrevivência à Grande Tribulação. Isso banaliza a morte e o sofrimento dos outros."
A simplificação do cenário político como uma luta entre bem e mal também preocupa. "A Bíblia não sustenta essa dualidade. Há pecado dos dois lados", ressalta Reinke. Para ele, essa "teologia do conflito" distorce a ética cristã e alimenta visões políticas polarizadas.
Teologia ou ideologia?
Reinke afirma que transformar o Estado moderno de Israel em "nação santa" é um desvio teológico. "Nação Santa no Novo Testamento é o povo espiritual de Deus. Aplicar isso a um Estado moderno é um ato de idolatria", afirma.
Ele também critica frases como "quem é de Deus apoia Israel". "É uma carteirada espiritual. Já vimos esse mesmo maniqueísmo nas eleições. No fim, a teologia se ajoelha diante da política."

A visão judaica sobre o conflito e as profecias
Se para muitos evangélicos os conflitos envolvendo Israel são sinais do fim dos tempos, no judaísmo tradicional a leitura é bem diferente. Segundo o rabino reformista Rogério Cukierman, "mesmo quando os textos são lidos como se referindo a todo o Povo Judeu, as profecias sobre o fim dos tempos não são consideradas, de acordo com a maior parte dos autores clássicos e contemporâneos, como relevantes para conflitos contemporâneos".
Ele explica que na tradição judaica essas passagens têm caráter simbólico. "Yeshayahu Leibowitz, um filósofo judeu israelense do século 20, observante e crítico do nacionalismo religioso, chega a afirmar que o uso da religião para justificar nacionalismo messiânico é uma forma de idolatria."
Cukierman considera problemático ligar o fim dos tempos a figura de Israel. "Esse tipo de alinhamento não expressa um verdadeiro respeito pela tradição, pela fé ou pela autodeterminação do povo judeu. Pelo contrário, ele instrumentaliza a existência do povo judeu — e do Estado de Israel — a serviço de um projeto escatológico que nega, na sua própria essência, a validade da experiência religiosa judaica."
Ele acrescenta que a obsessão apocalíptica presente em algumas correntes cristãs é estranha à espiritualidade judaica: "O judaísmo é, fundamentalmente, uma tradição voltada para a vida no presente — para a responsabilidade ética, a prática, a justiça e a continuidade coletiva. É algo absolutamente alheio à teologia judaica tradicional."
"Não é conflito religioso"
O cruzamento entre fé e geopolítica pode alimentar radicalismos quando mal interpretado. Para Reinke, líderes evangélicos acabam moldando a escatologia (a interpretação teológica sobre o fim dos tempos) de acordo com suas ideologias. "A escatologia vai se adaptando conforme o noticiário do dia", afirma. Segundo ele, muitos cristãos projetam no presente categorias bíblicas do passado: "O Israel de hoje é visto como o mesmo Israel da Antiguidade, e seus inimigos também são interpretados como os de então: os palestinos são associados aos filisteus (ou aos amalequitas), e os árabes, aos ismaelitas, considerados inimigos perpétuos."
O rabino Rogério Cukierman compartilha a preocupação: "O que estamos vendo hoje não é um conflito religioso — é um conflito essencialmente político, alimentado por lideranças fundamentalistas de todos os lados, que manipulam o discurso religioso com o objetivo de ampliar seu próprio poder". Para ele, a dignidade humana deve ser o centro da ação religiosa. "Devemos, sim, cuidar da nossa proteção, mas não podemos nos limitar a isso. A dignidade de todas as pessoas precisa estar no centro das nossas reflexões e das nossas ações, especialmente em momentos de tamanha urgência."
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