'Quase deu ruim': como é a fronteira do Brasil onde a mão do trânsito muda

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Em Bonfim, no estado de Roraima, uma simples visitinha à cidade vizinha pode se tornar bem complicada: é que Lethem, na Guiana, adota a mão inglesa —e a troca acontece no meio da estrada, surpreendendo turistas, que dividem relatos virais nas redes.
Mudança de mão viralizou
Uma visitante, identificada apenas como @cir.guerra, filmou o momento em que a mão muda no meio da ponte do Rio Tacutu. O registro do fim de abril foi republicado por outros perfis e já acumula milhares de visualizações e comentários na plataforma. Assista:
A ponte é a única fronteira terrestre nas Américas na qual os motoristas devem mudar de sentido de circulação de tráfego; da direita (no Brasil) para a esquerda (na Guiana), ou vice-versa. A troca é realizada por meio de um viaduto de conversão no lado da Guiana, após o fim da BR-401.
Por que mão "fica" inglesa na fronteira Brasil-Guiana?
Nossa vizinha já foi conhecida, em outros tempos, como Guiana Britânica. Ex-colônia do Reino Unido que se tornou independente em 1966, a Guiana ainda mantém alguns vestígios de sua história, assim como nós. Da mesma forma como herdamos a língua portuguesa de Portugal, eles falam inglês por lá. E, na hora de se orientar no trânsito, ainda adotam as mesmas regras de sua antiga metrópole.
Bonfim, um pequeno município de 12,5 mil habitantes em Roraima, segue as mesmas leis de trânsito que o resto do Brasil. Ou seja, motoristas se mantêm à direita nas ruas e ultrapassam à esquerda, enquanto na Guiana acontece o inverso.
A ponte sobre o rio Tucutu é uma das fronteiras terrestres com conversão de sentido de tráfego mais interessantes do mundo. Sua estratégia, em vez de adotar o clássico cruzamento em "X" de outros locais, foi adotar a sobreposição dele. Para que os carros possam mudar de lado, a ponte divide suas duas mãos em diferentes níveis e permite que uma "passe por cima" da outra antes que elas se reencontrem. A mão é trocada organicamente, quando o carro "vira" para completar uma das curvas. Assim, o fluxo não é interrompido. Para entender melhor, veja a imagem:

O projeto da ponte, que oficialmente se chama Prefeito Olavo Brasil Filho, foi pago totalmente pelo Brasil com o apoio do governo guianense. A obra custou, à época, US$ 5 milhões, segundo a Associated Press, e foi inaugurada pelo presidente Lula em 2009 com fanfarra, já que permitiria a ampliação do comércio entre Brasil, Guiana e, por extensão, com o Caribe.
Brasileiros não precisam usar carro com volante à direita para entrar na Guiana. Desde que sua chegada esteja de acordo com as exigências das autoridades de fronteira da Guiana, não há problema de utilizar o nosso volante à esquerda —é assim que brasileiros que trabalham em Lethem relatam, nas redes, ir à cidade. No entanto, é preciso alugar um carro guianense para quem quer explorar outras áreas do país.

Isso porque Brasil e Guiana têm estabelecido um regime especial de fronteira e transporte em Lethem e Bonfim. O acordo prevê que veículos motores e bicicletas com registro no Brasil conduzidos por residentes brasileiros visitando a Guiana dentro da área definida (regiões 8 e 9 do país) são considerados dentro de um esquema de "importação temporária", ou seja, ali é permitido trazer seu próprio carro. Um novo acordo de 2024 ampliou as possibilidades para cruzar a ponte, criando três linhas de ônibus entre Guiana e Brasil, mas estas operadas por motoristas com habilitações internacionais.
"Fronteira mais fácil que você vai cruzar". É assim que um usuário do Reddit define no fórum r/Guyana o encontro entre os dois países na ponte. "Você gasta cerca de cinco minutos de Lethem a Bonfim", explica, citando a passagem por postos do Exército Brasileiro. Em outro fórum, sobre entusiastas de fronteiras, outro internauta comentou que este é "o uso mais robusto de impostos que já viu". Veja outro influenciador realizar a travessia:
Há quem discorde e, para evitar confusão, a ponte ainda tem uma placa em português que pede "respeite a mão direita" para os guianenses perdidos com a nossa forma de dirigir na chegada a Bonfim. O alerta foi compartilhado pela mesma página acima, a Guyana South America, no Facebook. A experiência da troca de mão pode ser confusa e já causou acidentes fatais com brasileiros na Namíbia em junho de 2024.
O risco é ainda maior na mão inglesa com carro brasileiro, por exemplo, já que o volante à direita é tido como um facilitador de visibilidade para quem dirige à esquerda e vice-versa. "[Na] primeira vez em que estive neste local, quase deu ruim. Fiz esse 8 e, quando entrei na cidade, fui indo para a mão normal [sic]. Quase deu ruim", relatou o brasileiro André Souza no Instagram. Por isso, o UOL Carros têm um guia com dicas para quem vai dirigir no exterior em outra mão de direção.
Ponte é estratégica
Construção não tinha o intuito de apenas facilitar o tráfego de pessoas. Durante séculos, povos originários da região atravessavam para qualquer um dos lados por meio do próprio rio. Brasileiros e guianenses já viviam juntos, apontou uma reportagem da BBC da época. Mas a obra permitiu o transporte de carga com commodities entre os dois países —o que beneficiou ainda mais os guianenses, agora intermediários dos produtos brasileiros aos mercados europeus e norte-americanos, na visão do diplomata Ronald Sanders.
Ponte ainda solidificou as boas relações entre Brasil e Guiana, desagradando Hugo Chávez. O presidente venezuelano não gostava da ideia, ainda de acordo com a BBC, pois a Venezuela alegava ter direito a dois terços do território guianense, uma tese que o Brasil rejeitava. Nos bastidores, sua oposição teria atrasado o projeto por alguns anos —o projeto havia sido acordado entre os dois países originalmente em 1988. Com essas dificuldades superadas no campo diplomático, o vice-consulado do Brasil em Lethem finalmente saiu do papel.
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