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Os muçulmanos sem cidadania de Mianmar: a minoria mais perseguida do mundo

Katrin Kuntz

Em Sittwe (Mianmar)

05/06/2015 06h00

Em Mianmar, milhares de membros da minoria muçulmana rohingya estão fugindo da perseguição pelos budistas. Após sofrerem abusos nas mãos de contrabandistas, eles estão sendo rejeitados na Malásia, Indonésia e Tailândia.

Nuralan costuma permanecer acordado por horas à noite, quando um vento morno sopra pela cabana, trazendo o cheiro do mar. Ele espia para sua irmã, deitada ao seu lado na esteira. Ele vê seu irmão aos seus pés e sua mãe, ambos dormindo. Se ele corresse para o mar como já fez, e se lançasse a ele na direção da Malásia, como já fez, então ele teria que deixar todos sozinhos aqui, em um campo de refugiados no oeste de Mianmar (antiga Birmânia).

É claro que sentiriam sua falta. Mas isso não proporcionaria aos seus irmãos mais espaço na cabana? E Nuralam –um jovem diminuto de 23 anos com voz calma e com um tecido até a altura do tornozelo amarrado em sua cintura– finalmente não se tornaria uma pessoa real? "Uma pessoa com trabalho", ele diz. "E com direitos."

Como membro da minoria religiosa muçulmana rohingya, ele não é reconhecido por seu país como um cidadão. Nos últimos anos, budistas radicais têm agitado a população contra a religião dele. Apesar de ter nascido em Mianmar, as autoridades se referem a ele como "bengalês".

O que mantêm um homem como Nuralam em um país no qual não é reconhecido como cidadão e que não lhe dá um passaporte? Diante da falta de algo melhor para fazer, é um pensamento que perturba Nuralam inúmeras vezes no campo.

Durante suas caminhadas, ele vê repetidamente crianças nuas brincando no esgoto. Até o momento neste ano, mais de 25 mil rohingya fugiram em barcos pelo Golfo de Bengala. As imagens da odisseia desesperada deles além da costa da Tailândia, Malásia e Indonésia foram transmitidas para todo o mundo. "Eu queria ser um deles", diz Nuralam.

Na noite de 14 de abril, quando todos estavam dormindo, Nuralam se levantou de sua esteira. Ele caminhou silenciosamente até a porta e correu para a praia. Ele marcou um encontro com um contrabandista que o esperaria ali. Nuralam não sabia em que odisseia estava prestes a embarcar. Ele apenas queria deixar a insanidade de Mianmar para trás.

Terra de ninguém

Nuralam, seus três irmãos e sua mãe viveram nos últimos três anos no Campo Bawdupa, uma instalação para os rohingya expulsos em Sittwe, a capital do Estado de Rakhine. Rakhine é um dos Estados mais pobres, uma terra de ninguém que é lar de cerca de 3 milhões de pessoas, incluindo perto de 1 milhão de membros da minoria rohingya. Cerca de 140 mil deles são forçados a viver em aldeias parecidas com guetos, das quais não são autorizados a sair.

Faz uma semana que Nuralam voltou ao campo. Após semanas no mar, seu esforço para escapar fracassou. É uma manhã de maio e ele está sentado em sua cabana, que é construída sobre palafitas. Sua mãe gostaria de oferecer algo à convidada, mas não há nada para dar. "Nós estamos vivendo em uma cadeia aqui", ele diz. Ele deseja contar a história de sua vida e de seu esforço para escapar.

A história dele teve início três anos atrás, com um evento que dividiu as vidas dos rohingya em antes e depois. Em maio de 2012, um grupo de muçulmanos em Rakhine foi acusado de estuprar e assassinar uma mulher budista. Em consequência, os budistas incendiaram as aldeias muçulmanas em retaliação. Centenas de pessoas morreram e milhares fugiram, e muitas estão vivendo nos campos desde então.

Na época, Nuralam trabalhava como condutor de riquixá em uma cidade chamada Sittwe. Ele nunca foi à escola. Quando foi para casa em 8 de julho de 2012, ele encontrou sua vizinha caída em frente de casa –com sua cabeça decepada ao lado de seu corpo. Nuralam testemunhou os budistas reunirem os rohingya. Enquanto incendiavam as casas, Nuralam se escondeu na mata. Naquela noite, ele fugiu do distrito onde viviam em Sittwe. O governo lhe deu um lugar para morar em um campo.

A turbulência interna de Mianmar

O Estado de Rakhine reflete a turbulência interna de Mianmar. Por um lado, há um país que se abriu desde que o presidente Thein Sein tomou posse em março de 2011, após quase 50 anos de ditadura militar. A Liga Nacional pela Democracia de Aung San Suu Kyi obteve reconhecimento oficial como partido de oposição, presos políticos foram libertados e o Ocidente suspendeu a maioria das sanções contra o país. Por algum tempo, pelo menos, Mianmar parecia ser uma das poucas histórias encorajadoras em desdobramento no mundo. Mas as reformas logo estagnaram –e a onda de violência contra os rohingya teve início.

Durante a frágil transição política para a democracia dos últimos anos, o governo reacendeu um velho conflito. A identidade de Mianmar é definida em grande parte pela religião, e muitos budistas acreditam que os muçulmanos rohingya foram trazidos para o país pelos ex-governantes coloniais britânicos. Eles se sentem ameaçados por eles.

Na verdade, a comunidade muçulmana existe em Mianmar desde o século 16. Durante o período colonial britânico, os muçulmanos também vieram como trabalhadores. Quando a então Birmânia se tornou independente em 1948, os muçulmanos eram maioria em muitas áreas em Rakhine, mas os budistas os acusavam de terem ajudado os britânicos. Em 1982, foi negado aos rohingya a cidadania birmanesa e a discriminação contra eles continua até hoje.

A ONU descreveu os rohingya como uma das minorias mais perseguidas do mundo. Até mesmo Aung San Suu Kyi, a ganhadora do Prêmio Nobel da Paz que foi mantida por anos sob prisão domiciliar pelos militares, se mantém em silêncio a respeito dos rohingya. Provavelmente ela não deseja colocar em risco os votos nas eleições parlamentares previstas para o final do ano, como se a simples menção deles pudesse de algum modo causar uma calamidade. Organizações de direitos humanos que antes faziam campanha em prol de Suu Kyi agora a estão criticando. Quando perguntado sobre os rohingya, o porta-voz de Suu Kyi diz: "Eles são imigrantes, bengaleses".

'A vida aqui é intolerável'

Há poucos traços do trabalho de organizações internacionais no campo onde Nuralam agora vive. Em 2014, os budistas de Rakhine invadiram os escritórios locais da Médicos Sem Fronteiras, quebraram os móveis e exigiram receber metade de toda a ajuda. Agora os comitês deles controlam os campos, deixando as escolas sem professores e enfermarias onde ninguém sabe ao certo se um médico aparecerá. "A vida aqui é insuportável para todos", diz Nuralam.

Nuralam está familiarizado com as quatro leis raciais que estão sendo discutidas no Parlamento. Uma declara que as mulheres devem apresentar um requerimento caso queiram se casar com um homem muçulmano. Outra proíbe a poligamia. Em algumas religiões, as mulheres só são permitidas a dar à luz uma criança a cada três anos. E as pessoas que quiserem trocar de religião devem primeiro apresentar um requerimento ao Estado. O presidente Thein Sein apenas sancionou a lei de nascimento. Ativistas de direitos humanos temem que agora ela seja aplicada pelos governos regionais nas áreas onde vivem os rohingya.

O contrabandista que se encontrou com Nuralam na praia o levou pela costa até uma navio que veio da Tailândia. Cerca de 400 rohingya de Mianmar e de Bangladesh tomaram o navio. Mais de 200 mil rohingya vivem em Bangladesh, com a maioria fugindo da miséria. No mar, quando a tripulação lhe apontou um lugar no convés, Nuralam diz que começou a chorar ao se lembrar de sua mãe dormindo. Mesmo assim, ele sentiu que estava fazendo a coisa certa.

Segundo Nuralam, o contrabandista lhe prometeu um emprego em uma fábrica na Malásia e não exigiu nenhum dinheiro –ao menos inicialmente. No navio, o contrabandista lhe deu arroz, um copo de água e sal. Ele ordenou que os refugiados permanecessem sentados em silêncio. Certo dia, quando Nuralam foi ao banheiro pela segunda vez, um dos contrabandistas lhe bateu com uma corrente de ferro. Nuralam passou um mês vivendo em uma área medindo um metro quadrado, com suas mãos e pés atados –um homem enrolado como se fosse uma bola e pronto, a qualquer momento, para ser engolido pelo mar.

Nuralam diz que não foi ordenado aos refugiados de Sittwe que pagassem até tentarem desembarcar. O preço da passagem de Mianmar até a Tailândia, pelo Mar de Andaman, e dali para a Malásia, é de US$ 2.000.

Extorsão e tortura

Aqueles que não têm dinheiro são mantidos na embarcação pelos contrabandistas ou levados para um barracão na floresta. Eles telefonam para parentes dos refugiados, jogam água escaldante neles ou arrancam as unhas para coagir as famílias a pagarem. O navio de Nuralam parou além da costa da Tailândia. "Eu podia ver terra firme", ele diz, mas Nuralam não foi autorizado a deixar o navio. Novamente ele estava sem lar, só que desta vez em alto mar.

Ativistas de direitos humanos estimam que cerca de 4.000 rohingya ainda estão presos em embarcações. Um dos problemas aqui é que muitos países do Sudeste Asiático não são signatários da Convenção das Nações Unidas para Refugiados de 1951. Dias atrás, a Indonésia e a Malásia fizeram concessões e concordaram em receber os rohingya por um ano, apenas uma medida tampão de emergência.

Desde o início de maio, quando valas comuns foram descobertas na Tailândia –provavelmente restos mortais de rohingya– as autoridades tailandesas endureceram os controles de fronteiras. Nos últimos dias, novas valas comuns foram descobertas na selva na Malásia, onde bandos de traficantes prenderam centenas de refugiados e novamente extorquiram suas famílias.

A irmã mais velha de Nuralam entra na cabana no campo em Sittwe. Ela olha para seu irmão em reprovação enquanto ele conta como eles ancoraram além da costa da Tailândia por 10 dias, como temia que morreria de sede ou fome, como a Marinha tailandesa forçou o navio a dar meia-volta, como ele voltou a Sittwe há uma semana, fraco e cheio de vergonha. E de como sua família agora deve US$ 100 por ter pago para que o soltassem do navio.

"Eu vou encontrar uma mulher para Nuralam", diz sua irmã. "Porque pertencemos a este país." Ela faz uma alusão ao fato de que os rohingya podem requisitar uma cidadania de segunda classe se puderem provar que sua família vive em Mianmar há mais de 60 anos. Mas para consegui-la, eles também precisam aceitar o nome "bengalês". Pode parecer um gesto generoso por parte do Estado, mas a realidade é que poucos rohingya possuem documentos de identidade.

E é assim que prefere a maioria budista do país, especialmente organizações nacionalistas como o Movimento 969, que conta com muita influência em Mianmar. Elas defendem que qualquer um que não seja budista teravada (a mais antiga escola budista fundada na Índia) não pode ser realmente mianmarense.

Fomentando o ódio

Em Mandalay, na região central de Mianmar, Ashin Wirathu, 46 anos, recebeu sua visitante no Mosteiro Ma Soe Yein. Ele é um homem pequeno e afável com sorriso gentil, mas já foi chamado de o "Bin Laden Mianmarense" e, na capa da revista "Time", a "Face do Terror Budista". Wirathu foi sentenciado a sete anos de prisão por incitar o ódio. Após ser solto graças a um programa de anistia há poucos anos, ele agora lidera 2.500 monges em Mandalay. Mas muitos o consideram um fantoche do regime.

Nesta manhã em particular, Wirathu está sentado com uma túnica vermelha em uma sala de oração, com os monges silenciosamente curvados diante dele. Na sala ao lado há fotos de pessoas mutiladas –supostamente budistas mortos pelos muçulmanos.

Quando perguntado qual considera ser sua atividade mais importante, ele responde, "Facebook". Ele acabou de postar fotos de uma menina budista que supostamente foi estuprada por um homem muçulmano. Há também um aplicativo Wirathu e vídeos no YouTube –ele faz discursos por todo o país. Wirathu sempre fala sobre o mesmo assunto: ele alega que os rohingya querem tomar Mianmar. Ele faz com que a entrevista para a "Spiegel" seja filmada. Ele diz que a medida não é por preocupação de que possa ser mal entendido e assegura que não deseja a morte de ninguém.

Quando perguntado sobre o que o Movimento 969 deseja, Wirathu, que é monge desde os 14 anos, diz: "Queremos assegurar a identidade e religião de Mianmar".

Ao ser perguntado sobre o que tem contra os rohingya, ele diz: "Os muçulmanos são minoria aqui, mas também são uma ameaça contra nós: 'Charlie Hebdo', 11 de Setembro, o café na Austrália, Síria, Nigéria, Quênia, Boko Haram, Estado Islâmico, pense nisso. Eles querem transformar o Estado de Rakhine em uma república bengalesa".

Quando perguntado por que os rohingya estão fugindo, ele permanece em silêncio.

Ao ser questionado por que o país não está ajudando os refugiados, Wirathu diz: "Mianmar não é responsável por eles. Afinal, não cidadãos não podem ser refugiados". É uma resposta com a qual ele parece satisfeito. Ele alega que a Arábia Saudita está financiando os rohingya.

Um novo dia começa no campo rohingya em Sittwe. Nuralam acorda às 5 horas da manhã, pega água no poço e nozes de areca envoltas em folhas de betel. Ele está tentando encontrar formas de passar o dia. "Eu gosto do vento e de silêncio", ele diz.

Pensando em seu futuro, Nuralam diz que está considerando vender frango no mercado junto com seu cunhado. Ele diz que será bom para eles ganhar um pouco de dinheiro para sua mãe. Pessoalmente, Nuralam diz que não se importa em não ter nada. Ele sabe que não há oportunidades para eles em Mianmar. Ele deseja permanecer livre e sem compromisso. Isso também facilitaria sua fuga, ele diz.

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