A cultura nerd deve morrer?

Hubert Guillaud

Pete Warden (@petewarden) é um nerd, ou seja, uma espécie de geek com pouco traquejo social… Engenheiro de formação, diretor técnico da Jetpac, uma empresa que recentemente foi comprada pelo Google, ele também é um desenvolvedor maluco que, entre outros, lançou o Data Science Toolkit e o Open Heat Map.

Warden conheceu sua primeira namorada em um MUD, um RPG para múltiplos jogadores, e percorreu 7.000 quilômetros de avião para vê-la pessoalmente. Ele programou videogames, trabalhou em diversas start-ups e grandes empresas de internet, e ainda joga Dungeons & Dragons… "Se tem alguém que pode se dizer nerd, sou eu!", ele conta em uma postagem de seu blog intitulada "Por que a cultura nerd deve morrer".

Quando ele era adolescente e estudante, a cultura geek estava começando. A maioria das pessoas não entendia as coisas que o interessavam... Aos poucos, ele foi conhecendo pessoas que compartilhavam dos mesmos interesses que ele tem por ficção científica, histórias em quadrinhos, jogos e computadores. "A cultura nerd nos uniu", ele explica, mas era difícil de encontrar essas pessoas e ainda estávamos muito fora do mainstream.

Ao longo da última década, tudo mudou. A adaptação de quadrinhos se tornou o filão mais rentável de Hollywood. "Senhor dos Anéis" e "Game of Thrones" não são mais para poucos iniciados. A cultura geek se tornou mainstream. Os geeks e os nerds ficaram mais importantes, agora com dinheiro, poder e status. Eles estão à frente das maiores e mais dinâmicas empresas do mundo. E a cultura dominante não zomba mais de nós, ela nos respeita. Trabalhar com videogames se tornou sexy. "Vencemos!"

"E é aí que está o problema. Nós sempre nos comportamos como a Aliança Rebelde [referência a "Guerra nas Estrelas"], mas agora somos o Império. Chegamos aqui ignorando os outsiders e acreditando em nós mesmos quando ninguém mais acreditava. Essa década mostrou que tínhamos razão e que os críticos estavam errados, e foi assim que nosso costume de não ouvir os outros se consolidou em nós."

Chegou a se tornar um ritual atacar aqueles que não nos entendiam, afirma Pete Warden. Mas esse reflexo se tornou um problema, agora que os nerds exercem um verdadeiro poder. "O Gamergate [movimento antifeminista que critica a cobertura midiática dos videogames] me deu vergonha de ser um gamer", ele conta, em referência à polêmica do verão europeu de 2014 em torno do assédio e da misoginia contra uma desenvolvedora de jogos.

Por muito tempo, os nerds foram ignorados pela cultura dominante. Hoje, eles estão prestes a se tornar a cultura dominante. Agora que eles têm status e poder, os representantes da cultura dominante "estão felizes de nos tratar como amiguinhos, mais do que como vítimas". E Pete Warden reconhece que ele mesmo tem muitos amigos em empresas de capital de risco do Vale do Silício, e que muitos de seus parceiros agora vêm do meio empresarial e do mercado financeiro, já que os nerds de hoje saem dos mais caros MBAs dos Estados Unidos...

Mas a cultura nerd tem uma virtude, que é seu ceticismo. Ela aprecia as provas, verifica os fatos e permite consertar o que não está funcionando. No entanto, embora ela saiba aplicá-lo aos outros, tem dificuldades para aplicá-lo em si mesma, lembra Warden. As estatísticas mostram o quanto essa indústria está desequilibrada em suas relações de classe, de diversidade e de gênero… e o quanto esse desequilíbrio só está se agravando.

Os nerds "estão se comportando como idiotas", e nossa tolerância em relação ao nosso próprio comportamento só o torna pior, diz Pete Warden. "Quando olho ao meu redor, vejo que essa cultura que construímos como uma revolução libertadora está se tornando uma incumbência repressiva. Nós construímos aparelhos mágicos, mas não nos preocupamos o suficiente em proteger as pessoas comuns do preconceito que elas sofrem ao utilizá-los (…). Nós não nos preocupamos com as pessoas que perdem quando perturbamos o mundo, somente com os vencedores, que tendem a se parecer muito conosco. (…) Nosso arraigado sentimento de vitimização se tornou uma justificativa perversa para o bullying."

A cultura nerd realizou coisas maravilhosas. Mas ela se tornou uma espécie de código-fonte intocável e tão cheio de problemas, que a única decisão racional seria abandoná-lo para construir algo de melhor. E Pete Warden procura se inspirar no movimento Maker (movimento da cultura do "faça-você-mesmo", apaixonado pela impressão 3D), que ele descreve como bem mais inclusivo (algo ainda a ser demonstrado). "Nossa tolerância com o comportamento de 'cuzão' deve acabar, mas isso é uma parte tão integrante da cultura nerd, que deve ser detonada por completo para que não volte mais. [referência a uma passagem do filme 'Alien']"

Em uma postagem bastante pessoal, o especialista em história visual André Gunthert (@gunthert) fala sobre a polêmica da camisa sexista usada por um dos físicos da missão Rosetta. Ele ressalta que o sexismo e a misoginia das referências culturais da cultura nerd são uma cegueira.

"A cegueira é uma terrível admissão de derrota. Ainda não me decidi a abandonar aquilo que em grande parte construiu minha identidade de adulto. Mas meu coração já não está mais lá. Não consigo mais ter orgulho de minha cultura, que eu achava ser avançada. A cultura geek era a alternativa à cultura distinta, o amor pelo pop, pela tecnologia, pela ciência e pela modernidade. Hoje, ela me parece como um momento da história, e não mais como meu ambiente natural. A mudança começou, e a camisa de Matt Taylor foi um dos pregos do caixão. Não, não é um detalhe. Só a recusa em enxergar o sexismo de uma imagem."

Quando as ferramentas da cultura nerd se voltam contra as mulheres, contra os mais desamparados, contra as minorias, contra a igualdade e contra a democracia, está de fato na hora de dizer que essa cultura não é a nossa, tão divertida, rebelde, impertinente e alternativa como parecia ser.

Tradutor: UOL

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