Como é ser membro do Boko Haram? E como é viver na terra dominada pelo grupo?

Joan Tilouine

  • Tyler Hicks/The New York Times

    Soldado do Chade passa diante de local com a bandeira do Boko Haram

    Soldado do Chade passa diante de local com a bandeira do Boko Haram

O que pode ser pior do que não entender nada das motivações daqueles que querem matar você? Debaixo de um alpendre que o protege de um sol escaldante, Nassiru, um nigeriano de 43 anos, não consegue parar de pensar naquilo que pode ter levado seus vizinhos e amigos a entrarem para o Boko Haram.

Originário do vilarejo de pescadores de Boro Baga, no lago Chade, que foi tomado de assalto no início de 2015 pelo grupo jihadista, ele deu início a um périplo de várias semanas, de ilha em ilha, para ir se refugiar em Baga Sola. Depois de sair dessa pequena cidade chadiana à beira do lago, atingida por cinco homens-bomba em outubro de 2015, ele foi parar em um campo de refugiados.

Esses malditos dizem que estão fazendo o trabalho de Deus, matando cristãos e muçulmanos, saqueando e traficando como bandidos, estuprando as mulheres. Mas o que eles querem? Poder? Reinar sobre uma região que eles destruíram? Nassiru

Nassiru, um camponês distinto, não consegue entender. Seu rosto se retorce e seus olhos se fecham quando ele se lembra dos horrores que testemunhou. Às vezes, enfia a cabeça em sua gandura para secar lágrimas que não devem ser vistas.

Então o que querem esses jihadistas, a maior parte deles analfabetos, muitas vezes drogados e famélicos, motivados inicialmente pelo sonho de um califado dirigido por líderes que hoje brigam em público? O movimento, um dos mais mortíferos do planeta, causou a morte de mais de 20 mil pessoas na região desde 2009.

Antes de revelar sua barbárie, a retórica do Boko Haram iludiu jovens da região. Os sermões de Mohammed Yusuf, fundador da seita islâmica morto em 2009, e os de seu sucessor, Abubakar Shekau, penetraram no campo e nas ilhas. "Há quase dez anos, eles são trocados em cartões de memória de telefone", contam os jovens do lago.

Foram muitos os que vibraram com essas vozes exaltadas. Entre eles, estavam amigos e parentes de Nassiru que entraram para as fileiras do Boko Haram. Pessoas simples como ele, agricultores que não tiveram a oportunidade de frequentar a escola. Os milionários de Lagos, a fervilhante metrópole costeira, os ignoraram. O grupo jihadista os enganou, os iludiu, mas permitiu que esses jovens da bacia do lago Chade sonhassem com riqueza e prosperidade, com a possibilidade de escolher uma mulher e deixar esses fins de mundo, ou de se reaproximar de Deus. Era só uma miragem.

A floresta de Sambisa, no nordeste da Nigéria, constituía o principal bastião do Boko Haram. Nessa antiga reserva natural, com duas vezes o tamanho da Bélgica, milhares de combatentes e simpatizantes se instalaram em torno de seu líder. "Em Sambisa, eles recriaram sua sociedade ideal e autônoma, sem corrupção nem intervenção do Estado", diz um analista da região.

Homens e mulheres viveram ali como em um markaz, um centro comunitário tipicamente muçulmano onde cada um contribui com seu conhecimento, cuidam de suas coisas e rezam. Ali havia camponeses, comerciantes, açougueiros, alfaiates, motoristas, mecânicos... O recrutamento do Boko Haram pretendia ser amplo. A sociedade inteira fornecia braços para a organização, muitas vezes motivados por um dever de "proteção do islã", convencidos pelos comportamentos ilegítimos e "haram" dos governos, e atraídos pelo dinheiro.

Todos se uniam em torno de uma interpretação salafista adaptada às realidades locais. Eles rejeitavam as autoridades políticas ou tradicionais que administravam seu território, considerados como corruptos e ímpios. Em Sambisa, eles seguiam um ensinamento religioso dispensado por epígonos de Mohammed Yusuf. Às vezes, Abubakar Shekau conduzia a prece e fazia sermões belicosos. Os reféns, como algumas das meninas sequestradas em Chibok em abril de 2014, eram marginalizados, violentados.

Um pregador camaronês de etnia kanuri, preso em 2015, oficiava ali como imã. Segundo seu interrogatório, consultado pelo jornal francês "Le Monde", esse goni (erudito que memorizou o Corão em kanuri) tinha muito orgulho de ter sido recrutado por "sua inteligência corânica" por membros do Boko Haram em busca de "teólogos" capazes de justificar e encorajar seus abusos.

Nigéria vive entre o radicalismo do Boko Haram e o boom econômico

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"Instaurar a sharia em toda a Nigéria"

Sua missão? "Ensinar-lhes o Corão". E seu objetivo? "Instaurar a sharia em toda a Nigéria". A lei corânica é aplicada desde 2000 em doze Estados do norte do país, o que não era o suficiente para o Boko Haram. "Aqueles que se dizem muçulmanos e seguem os costumes ocidentais são considerados pecadores", afirma friamente esse pregador.

Em Sambisa, os jihadistas se distribuíam por dezenas de "acampamentos" até bem organizados. Ali eles rezavam e aprendiam a matar durante um treinamento de dois meses. "1: desmontar e montar a arma; 2: cinco pontos de manutenção da arma; 3: posições de tiro", dizem os depoimentos de combatentes presos. Mulheres e crianças eram treinadas no manejo de armas tomadas nas conquistas ou traficadas a partir do Sudão e do Chade. Depois os combatentes eram enviados para os campos de batalha.

"Os chefes do grupo são recrutados entre os melhores alunos, jovens na maior parte das vezes", diz o goni, que se gaba de ter convivido com os tomadores de decisões. Além de Shekau, ele diz ter falado com Habib Yusuf, um dos filhos do fundador da seita. Ele também cita o influente Mamman Nur, conhecido por sua diplomacia dentro da esfera jihadista saheliana, o ""Senhor Operações Externas" Moudou Abba, e Bana Blachera, que por um tempo foi cogitado para assumir a liderança do grupo. A respeito deste último, o pregador disse, como se para desdenhar dos militares camaroneses que o interrogavam: "Bana Blachera costumava morar em Maroua, grande cidade do norte de Camarões, e Habib Yusuf vinha de vez em quando para Camarões."

No norte desse país, o Boko Haram delegava o recrutamento a comandantes de zona autônomos tanto em suas ações, quanto em seus financiamentos. Esses pequenos líderes orquestravam a distribuição de doações aos jovens pobres para atraí-los. Como se para devastar ainda mais o tecido social, recrutas camaroneses tiveram de degolar seus pais para provar sua determinação, segundo vários depoimentos concordantes. Seria uma espécie de rito de iniciação que impediria qualquer reintegração posterior.

O mesmo valia para o Chade.

Quando degolávamos alguém, cortávamos o esôfago para prendê-lo em nossas armas e servir de blindagem" Mani, 19, interrogado pelos militares chadianos

Mani foi um dos dez membros do comando presos em 2015 por ter participado de dois atentados suicidas perpetrados no dia 15 de junho deste ano em N'Djamena, a capital. Em seu depoimento, ao qual o "Le Monde" teve acesso, ele diz ter entrado para o Boko Haram oito meses antes, para fazer uma poupança. "A gente saqueava os vilarejos, executava aqueles que não tinham dinheiro e às vezes liberava os ricos", ele diz.

"Em caso de derrota" em outras frentes, eles recorriam a homens-bomba que eles chamam de bushra ("boas novas" em árabe), "treinados secretamente". Alfaiates, frentistas, pequenos comerciantes, esses jovens pálidos obedeciam às ordens de Bana Fanaye, 30.

Esse pai de três filhos, importador de motos, originário do Estado de Borno, no nordeste da Nigéria, e residente do Chade, exercia a função de comandante de zona do Boko Haram. Em ligação direta com Abubakar Shekau, Bana Fanaye passava seu tempo "comprando armas e peças no Chade e no Sudão", "recebendo combatentes que batiam em retirada no Chade" e recrutando jundallah ("soldados de Deus" em árabe), como diz o mentor dos atentados de N'Djamena, condenado à morte e executado com seus jovens recrutas. Antes de morrer, um deles, Tchari Ali, resumiu sua motivação em duas palavras: "Dinheiro fácil."

A 150 km de N'Djamena, o chefe do distrito de Bol, ex-embaixador do Chade em Abuja, Youssouf Mbodou Mbami, não reconhecia mais seu lago. O grupo jihadista matava, mas não reivindicava nada. O estado de emergência, decretado em novembro de 2015 pelo governo chadiano, foi prorrogado até outubro.

No último ano, o Boko Haram operou uma retirada estratégica desse território lacustre. Os jihadistas mataram aqueles que resistiram e destruíram cidades inteiras, como a pequena cidade portuária de Baga Kawa, centro do comércio de peixes, onde mais de 2 mil pessoas morreram no dia 8 de janeiro. Aos 64 anos de idade, o líder tradicional de Bol, capital da região chadiana do Lago, não imaginou que um dia fosse ver esse nível de violência.

Seu distrito é composto principalmente de ilhas esvaziadas de suas populações pelo Exército chadiano à caça de jihadistas. Do outro lado, tudo parece imóvel. As canoas encalhadas não têm mais o direito de navegar. "Todo estrangeiro agora é suspeito e vigiado porque não existe um perfil típico do Boko Haram, o perigo pode vir de qualquer lugar", ele suspira.

E ele aponta com o dedo para essa ilha próxima, Higa, de onde saíram seis homens-bomba, três meninas e três rapazes, que se explodiram em Bol no dia 22 de dezembro de 2015. Notados pelos habitantes, eles tentaram fugir e as meninas detonaram seus explosivos. Halimé, 16, sobreviveu. Depois de ter uma perna amputada no pequeno hospital da cidade, ela escapou da vingança popular, mas não dos abusos sexuais dos militares. Apavorada, ela não quis depor.

Assim como Youssouf Mbodou Mbami e outros jovens convertidos ao jihadismo, os membros da etnia Boudouma, em especial, passaram a engrossar as fileiras do Boko Haram. Pescadores hostis ao Estado central, em disputa com outras etnias, eles colocaram a serviço do movimento seu conhecimento do labirinto de canais e ilhas às vezes efêmeras cuja cartografia muda o tempo todo.

Tyler Hicks/The New York Times
Rahila Amos, que disse ter sido raptada pelo Boko Haram e forçada a ter aulas de como se tornar uma mulher-bomba, em Minawao, Camarões

"O Boko Haram não confia neles"

"Centenas e talvez milhares de Boudouma se juntaram a eles pelo dinheiro, pela aventura, pela fé, não sabemos mais. Alguns voltaram recentemente para se infiltrarem e se recuperarem na casa de seus pais que os apontaram para nós", diz o líder tradicional. "Eles estão claramente encontrando menos apoio entre a população, que está traumatizada pelos massacres e pelos degolamentos."

O grupo jihadista, que é endógeno e transfronteiriço, se revelou inter-étnico. Segundo diversos depoimentos de habitantes e de autoridades locais, os novos recrutas do lago eram primeiramente levados para ilhas reclusas, do lado nigeriano. Sob vigilância de homens armados, eles permaneciam um ou dois meses, ouvindo os sermões. "É uma espécie de teste durante o qual eles são observados, pois no início o Boko Haram não confia neles", diz uma fonte local.

Aqueles que tentavam fugir eram abatidos na frente dos outros, prisioneiros de sua escolha e ignorância. "Muitos jovens do Boko Haram originários do lado chadiano do lago passaram somente pelas escolas corânicas de Maiduguri, onde receberam um ensinamento religioso radical", afirma o prefeito de Baga Sola.

Maiduguri, a capital do Estado de Borno, no nordeste da Nigéria, pulmão comercial transregional e incubadora de madrassas, onde nasceu a seita islâmica em 2002, fica a somente 250 km dali. Cerca de 60 km mais ao sul, fica a floresta de Sambisa, hoje cercada por militares nigerianos que encontram dificuldade para expulsar os jihadistas.

Mudança de direção

A sombria utopia do Boko Haram parece pertencer ao passado nessa floresta. Assim como Abubakar Shekau, o grupo jihadista se fragilizou, se perdendo tanto no plano doutrinário quanto no militar. As mensagens e os objetivos claros do começo deram lugar a arengas agressivas, às vezes risíveis, de um líder ávido por revanche e sangue, mas sem nenhuma estratégia. A unidade do grupo se rompeu ao longo dos excessos de loucura de Shekau, de seus massacres de muçulmanos, de seu uso de crianças-bomba. O objetivo de estabelecer um califado parecia distante.

E chegou o tempo da sobrevivência, das incursões de subsistência, dos tráficos e dos assassinatos diários de civis. Como se para tentar manter a chama acesa, Abu Mussab al-Barnawi, o novo "wali" do Boko Haram recém-apontado pelo Estado Islâmico (EI), se dirigiu aos irredutíveis que permaneceram nessa resistência em uma mensagem divulgada no dia 7 de agosto. "Não deixaremos nossos irmãos perdidos; essa mensagem chegará até a floresta de Sambisa", diz esse nigeriano que se comprometeu a poupar os muçulmanos, mas também a intensificar as destruições de igrejas e os assassinatos de cristãos.

Os homens do califa do EI, Abu Bakr al-Baghdadi, querem afastar Shekau para retomar o controle de sua franquia. Este último se recusa a deixar seu lugar. Os comandantes de zona e soldados de infantaria da Província da África Ocidental do EI [novo nome do Boko Haram] decidirão, de acordo com seus interesses, a quem eles obedecerão.

Às margens do lago Chade, Nassiru espera a guerra acontecer. Seu sonho é simples: voltar para sua ilha nigeriana, cultivar sua terra e esquecer essas atrocidades. Não tentar mais entender por que seus vizinhos e amigos um dia quiseram matá-lo.

Tradutor: UOL

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