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Na Índia, cães de rua são uma ameaça

Cão de rua rosna debaixo de mesa de restaurante em Nova Déli, Índia  - Enrico Fabian/The New York Times
Cão de rua rosna debaixo de mesa de restaurante em Nova Déli, Índia Imagem: Enrico Fabian/The New York Times

Gardiner Harris

08/08/2012 06h00

Vítimas de ataques surpresa mancam para dentro de um dos maiores hospitais públicos da cidade. Recentemente, entre as centenas estavam crianças encurraladas em suas casas, estudantes emboscados no caminho para a escola e pessoas de idade saindo do trabalho.

Todos contaram a mesma história assustadora: foram mordidos por cães de rua.

Deepak Kumar, 6, apresentava um corte em suas costas causado por um cachorro que atacou o casebre de sua família.

“Nós por fim fechamos os portões para nossa vila e batemos no cachorro até ele morrer”, disse o pai de Deepak, Rajinder.

Nenhum país tem tantos cachorros de rua como a Índia, e nenhum país sofre tanto com eles. Os cachorros de rua são dezenas de milhões e mordem milhões de pessoas anualmente, incluindo um grande número de crianças. Cerca de 20 mil pessoas morrem todos os anos infectadas pela raiva – mais de um terço da estatística global da raiva.

Bandos de cães de rua se escondem em parques públicos, guardam vielas e esquinas e uivam à noite nos bairros e vilarejos. Pessoas que correm carregam pedaços de bambu para bater nos cães, e ciclistas enchem os bolsos com pedras para jogar naqueles que os seguem. Andar com um cachorro de estimação aqui pode ser equivalente a nadar com tubarões.

Uma lei de 2001 proíbe a matança de cães, e a população de rua aumentou tanto que funcionários de todo o país expressaram alerta.

Em Mumbai, onde mais de 80 mil pessoas reportaram ser mordidas no ano passado, o governo planeja realizar um censo dos cães de rua usando motos para segui-los e tingindo seus pelos com tinta spray. Um membro da Assembleia Legislativa de Punjab propôs em junho mandar os cães para a China – onde às vezes se comem cães – depois que mais de 15 mil pessoas no estado disseram ter sido mordidas no ano passado. Em Nova Déli, funcionários anunciaram recentemente uma campanha intensiva de esterilização.

A posição da índia como um centro global para cães com raiva é antiga: o primeiro cachorro infectado com raiva provavelmente era indiano, diz o Dr. Charles Rupprecht, chefe do programa de raiva nos Centros para Controle e Prevenção de Doenças em Atlanta. As mordidas de cães causam 99% das mortes de seres humanos por raiva.

De fato, acompanhar a raiva no subcontinente é desafiador porque as relações que os cães indianos mantém com os seres humanos são ancestrais. O cão pária indiano, a raça dominante nas ruas, é provavelmente descendente de um antigo imigrante chinês, diz Peter Savolainen, professor de genética evolucionária no Instituto Real de Tecnologia em Estocolmo. Com orelhas pontudas, uma cabeça triangular e um rabo que se enrola sobre as costas, o pária se parece com outros cães pré-históricos como o dingo australiano.

Por milhares de anos, a relação dos cães com os seres humanos foi semelhante à do peixe piloto com os tubarões, diz John Bradshaw, diretor do Instituto de Antrozoologia da Universidade de Bristol na Inglaterra.

“Os cães essencialmente começaram se alimentado de carniça”, diz Bradshaw. “Eles evoluíram para andar em torno das pessoas em vez de ser úteis para elas.”

Embora essa relação tenha desaparecido em grande parte no mundo desenvolvido, ela continua sendo a relação dominante na Índia, onde os cães de rua sobrevivem dos montes de lixo onipresentes. Alguns são alimentados e usam coleiras de moradores que os valorizam como cães de guarda e companheiros, embora distantes. Os hindus são contra matar muitos tipos de animais.

Malini Jadeja, que mora em Déli parte do tempo, diz que estava andando com seu amado cachorro Fudge Cake há alguns anos não muito longe do Jardim Lodi quando “dois cachorros surgiram do nada e atacaram”, Fudge Cake estava na coleira, então não conseguiu fugir.

“Eu tentei agarrar os cães e puxá-los para longe, mas quando eu conseguia pegar um, o outro atacava”, disse Jadeja. “Eles mataram Fudge Cake na minha frente.”

Ela se culpa pela morte do cachorro e ainda vive aterrorizada pelos cães de rua.

“É muito difícil levar um cão para passear aqui por causa dos ataques dos cães de rua”, diz Radhey S. Sharma, presidente da Associação Veterinária Indiana.

Entretanto, a crescente classe média indiana começou a adotar ideias ocidentais para cuidar dos animais, comprando cães com pedigree e levando animais para dentro de casa. Mas muitos cachorros com pedigree acabam na rua, abandonados por criadores mal sucedidos ou donos que se cansam da experiência.

Os cães de rua são perigosos não só por causa de seus dentes mas também porque abrigam carrapatos e outros parasitas. Mas os defensores do bem-estar dos animais rejeitam veementemente a eutanásia; e alguns alertam que reduzir a população de cães de rua e não fazer nada com os montes de lixo do país pode ser perigoso porque os ratos podem se proliferar no lugar dos cães.

“A primeira coisa para começar a reduzir a população de cães de rua é administrar melhor o lixo”, diz Arpan Sharma, diretor-executivo da Federação de Organizações Indianas para a Proteção Animal. “E a segunda coisa é uma esterilização agressiva, castrando e vacinando os animais.”

Jaipur reduziu sua população de animais de rua, mas é uma exceção solitária que superou desafios enormes não só logísticos mas também culturais.

“As pessoas de fato não querem que nós tiremos os cães das ruas, particularmente nas áreas pobres”, diz o Dr. Jack Reece, veterinário de Jaipur que ajudou a liderar a iniciativa na cidade. “Em outras áreas, especialmente muçulmanas, eles não nos deixam soltar os cachorros novamente. Eu já fui cercado por grandes multidões de jovens irritados dizendo que eu não podia soltar os cães lá, embora eles tivessem sido tirados do mesmo local dois dias antes.”

Mais de uma dúzia de especialistas entrevistados disseram que o problema dos cães de rua da Índia só piorará até que uma vacina contraceptiva canina, ainda no laboratório, torne-se amplamente disponível e barata.

O Dr. Rosário Menezes, pediatra de Goa, diz que a Índia não pode esperar tanto. Os cães precisam ser retirados das ruas mesmo que isso signifique matá-los, diz ele.
“Sou a favor do direito das pessoas andar na rua sem medo de serem atacadas por bandos de cachorros”, diz ele.

Arshpreet Kaur tinha três anos quando um cão de rua entrou pela porta da frente de sua casa e mordeu a ela e ao avô. Em uma semana, Arshpreet teve dor de cabeça e depois febre. Seus pais a levaram para um hospital, mas ela entrou em coma, estado no qual permaneceu por nove anos antes de morrer.

“Há cães de rua por toda parte em Déli”, disse a mãe de Arshpreet, Jasmeen Kaur, numa entrevista por telefone. “Temos mais medo de mordidas de cachorro do que de qualquer outra coisa.”

(*) Com colaboração de Malavika Vyawahare e Niharika Mandhana