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Ex-presidente dos EUA Bill Clinton trabalha para deixar legado na África

Bill Clinton discursa durante Convenção do Partido Democrata na última quarta (5) em apoio à candidatura de Barack Obama à reeleição - Brian Blanco/Efe
Bill Clinton discursa durante Convenção do Partido Democrata na última quarta (5) em apoio à candidatura de Barack Obama à reeleição Imagem: Brian Blanco/Efe

Amy Chozick

Em Kayonza, Ruanda

08/09/2012 06h00

Bill Clinton não conseguia parar de falar sobre a soja. No jantar em Kigali, com meia dúzia de assessores políticos de longa data e ricos patrocinadores, ele citou o preço da soja (“Nunca superou US$ 8, e hoje está a US$ 16”) e exortou as virtudes da planta milagrosa (“Dá para cultivar com uma camada fina de solo”).

No dia seguinte, ele e a filha, Chelsea, fizeram uma visita a uma futura usina de processamento de soja, que ainda é um canteiro de obras de terra vermelha, ao pé de um morro verdejante. Clinton afastou uma mosca do olho e previu que a demanda ia aumentar muito.

“Os chineses não podem beber leite, então dependem da soja”, disse ele.

Mas quando o gerente da usina pediu que ele voltasse no ano que vem, quando a produção estará gerando trabalho para 1.400 produtores, Clinton passou a falar de si mesmo.

“Sou mais velho do que você”, respondeu. “Temos que saber se ainda estarei por aí”.

Em conversas, Clinton frequentemente passa a impressão que sente que já está vivendo além do tempo.

A vida atual de Clinton–de filantropo mundial em busca de curar os males do mundo e deixar seu legado- está longe do terreno lamacento da política partidária para o qual voltou na noite de quarta-feira (5), na Convenção Nacional Democrata. Em um momento tipicamente reservado para o vice-presidente, Clinton propôs o nome de Barack Obama para nomeação.

O convite demonstra como Clinton conseguiu reformar sua imagem e restaurar seu relacionamento estremecido com o Partido Democrata, após Obama derrotar a mulher dele nas primárias de 2008. E mostra como Obama passou a contar com um predecessor que antes denegriu, tanto como modelo quanto como validador.

Para muitos democratas, a nova estatura de Clinton e seu apelo aos eleitores rurais e da classe trabalhadora, um grupo vital ao qual Obama teve dificuldades em se conectar, o torna tanto um aliado do atual governo quanto um lembrete constante de suas limitações políticas.

“A excitação com a ‘esperança’ e a ‘mudança’ não é mais a mesma”, disse Hank Sheinkopf, consultor político democrata que trabalhou para Clinton. “Bill Clinton representa a América que Barack Obama precisa resgatar”.

Aos 66, Clinton já viveu mais do que a maior parte dos homens dos dois lados de sua família, e foi submetido a uma cirurgia para colocação de quatro pontes de safena, em 2004. O homem famoso por correr para o McDonald’s não come mais carne nem laticínios, e seu porte magro parece frágil e pouco natural para sua personalidade grandiosa.

Confrontando a perspectiva de um futuro sem Bill Clinton, ele está puxando cada vez mais sua família para dentro da Fundação William J. Clinton, a organização de caridade que inaugurou em 2001. A mulher dele, a secretária de Estado Hillary Rodham Clinton, disse que vai voltar ao trabalho voluntário depois do primeiro mandato do presidente Barack Obama, e sua filha assumiu um papel mais ativo nos últimos anos.

“Eu disse a ela ‘Chelsea, você tem que mergulhar fundo, se quiser ter uma vida com um impacto público”, disse Clinton.

Excursão intensa

A visita à usina de soja, parcialmente financiada por sua fundação, foi incluída na turnê de seis dias em julho pela África do Sul, Moçambique, Ruanda e Uganda. A excursão deu a Clinton, a sua filha e a um grupo de patrocinadores e assistentes desde os tempos do Arkansas e da Casa Branca uma visão em primeira mão do trabalho filantrópico que consumiu grande parte de sua energia após a presidência.

A viagem tinha a mesma sensação singular de uma turnê de campanha de Clinton, com uma programação intensa de discursos e encontros, agentes do Serviço Secreto, um Sun Country 737 alugado e muita sabedoria do Arkansas. (“Temos um ditado no Arkansas: se você encontrar uma tartaruga em um poste, ela não chegou ali por acaso”, disse Clinton a um grupo de enfermeiras intrigadas em Kigali.)

Durante a viagem, o assunto de sua presidência era frequente, mas nem sempre nostálgico. Com o genocídio em Ruanda, a epidemia de Aids e a fome e a guerra na Somália, a África surge como uma fonte de conflito e arrependimento para Clinton. Apesar de a sua fundação ter 1.300 funcionários e voluntários e funcionar em 50 países, em nenhum local o desejo de Clinton de consertar alguns erros de sua presidência e melhorar a marca Clinton é mais evidente do que aqui.

A lista de assistentes e patrocinadores que viajaram com Clinton para a África parece o índice de uma biografia da família Clinton. Os amigos de Clinton incluem Ira Magaziner, assessor importante da iniciativa de saúde de Hillary Clinton nos anos 90, que hoje dirige a divisão de saúde da Fundação Clinton, chamada Chai (das iniciais de Clinton Health Access Iniciative, pronunciada como o nome do chá indiano); Helen Robinson, uma amiga de Little Rock que trabalhou para Clinton quando ele era governador e teve cargos nas alas Leste e Oeste da Casa Branca de Clinton; e Jonathan Orszag, irmão do ex-assessor de Obama, Peter Orszag, e assessor econômico no governo Clinton.

Mas a viagem também incluiu patrocinadores como Andrea Catsimatidis, filha do magnata dos supermercados John Catsimatidis, e seu marido, Christopher Cox, neto de Richard M. Nixon, ambos partidários de Mitt Romney nas próximas eleições. Os outros dois patronos, Davis Sezna, diretor-executivo de um grupo de hospitalidade, e sua mulher, Barbara, também são republicanos.

Na viagem, Clinton muitas vezes invoca seu tempo na presidência, ilustrando discursos com frases como “nos anos 90” e “quando eu era presidente”. Ela gosta tanto de defender sua política externa que seus assessores criaram um verbo para isso. “You got Black Hawked” significa que Clinton pegou você no canto para fazer uma longa defesa da decisão de seu governo de intervir na Somália.

Mas ele não fez isso em Ruanda. Ele disse que uma das principais falhas de sua política externa foi não impedir o genocídio de 1994, no qual 800.000 ruandeses, na maior parte tutsis, foram massacrados.

“Não acho que poderíamos ter posto fim à violência, mas acho que poderíamos ter cortado sua extensão. E me arrependo” de não tê-lo feito, disse Clinton à CNN durante uma de suas paradas em Ruanda.

Hoje, uma placa com “William J. Clinton Foundation” está pendurada na entrada do Centro Memorial do Genocídio de Kigali. Clinton ajudou a levantar os fundos para construir o museu em torno de uma área para onde os sobreviventes levaram os restos de seus entes queridos.

Chelsea Clinton acompanha o pai a cada parada na África, cumprimentando a todos e se apresentando (“Oi, sou Chelsea”) ao longo do caminho. A exposição faz parte de sua evolução deliberada para uma figura mais pública e menos avessa à imprensa. Nos últimos anos, ela ingressou nos conselhos da Fundação Clinton, na Iniciativa Global Clinton e na Chai. Em um texto publicado no blog após a viagem, ela disse que não podia esperar para voltar para Ruanda.

“Espero que da próxima vez seja com meus dois pais e o Marc!”, disse referindo-se ao marido, Marc Mezvinsky.

Acredita-se que Hillary Clinton vai entrar para a fundação quando tiver deixado o cargo de secretária de Estado. (Bill Clinton pede aprovação do Departamento de Estado para todas suas reuniões com líderes estrangeiros. Enquanto sua mulher estiver no cargo, a Clinton Global Iniciative deve ter sua conferência anual nos EUA).

“Minha mãe é mais veemente em privado do que em público, se isso é possível, quando diz que vai deixar (o governo) no final do primeiro mandato do presidente Obama”, disse Chelsea Clinton. “Ela quer voltar a ser defensora profissional das mulheres e meninas”.

Ponte entre dois mundos

Uma boa parte do que Bill Clinton faz na Fundação Clinton e na Clinton Global Initiative é agir como ponte entre os patrocinadores ricos, como os que fizeram esta viagem, e as causas merecedoras. Apesar de seu relacionamento com certos bilionários ter gerado críticas, uma grande parte de sua agilidade política vem de sua capacidade de caminhar entre a opulência e a pobreza.

Em Johannesburgo, ele se hospedou no hotel Saxon, onde também esteve quando era presidente, mas ainda era a casa luxuosa de Douw Styen, excêntrico magnata de seguros sul-africano. Também foi neste hotel que Nelson Mandela hospedou-se depois da prisão, para escrever suas memórias, e há várias fotografias nas paredes de Clinton mais jovem e mais rechonchudo.

“Sempre me sinto culpado de ficar aqui”, disse Clinton olhando em torno das colunas de mármore de sua mansão particular e o exército de funcionários obedientes. “Mas acabo superando isso”.

Dois dias depois, um carro preto saiu com Clinton, sua filha e agentes do serviço secreto, em uma nuvem de poeira cor de laranja, e fez uma parada fora da programação em uma aldeia modelo chamada Nyagatovu, no interior da Ruanda.

“Amo isso”, disse Bill Clinton caminhando pelas terras com casas de um único cômodo e portas pintadas de cores vivas.

“Vamos lá ver as vacas!”, disse ele, e se abaixou de terno para fazer carinho em uma vaca marrom cheia de baba. “Essas pessoas têm o trabalho mais duro, porque têm que tirar leite todos os dias, então não têm férias”.

Ele gosta de usar o cumprimento zulu “sawubona” (“eu vejo você”) quando está viajando pelo Sul da África, e muitas vezes recebe a resposta “ngikhona” (“estou aqui”). Foi esse tipo de conexão pessoal que o ajudou a conquistar eleitores rurais e trabalhadores para o Partido Democrata em 1992, e é esse toque que muitos analistas políticos dizem que Obama não tem, uma falha que Clinton tenta ajudar Obama a superar.

“Suponha que sejamos amigos há 40 anos”, diz Clinton, colocando a mão no ombro do repórter. “Se você viesse me visitar no hospital e dissesse algo bonito e eloquente em vez de dizer, ‘meu Deus, lamento muito. Isso é horrível. Queria poder fazer mais para ajudar’, seria um insulto”.

“Então eu disse ao presidente que a eloquência deve vir no final dos seus discursos, nunca no meio”, disse Clinton.

Entre teorias sobre como resolver a falta de alimentos na África (“Precisamos fazer o que os americanos fizeram pelos agricultores, há literalmente 80 anos, durante a Depressão”) e estatísticas sobre doenças transmitidas pela água (“80% das vítimas têm menos de cinco anos”), Clinton muitas vezes leva a conversa de volta para a política.

Enquanto posa com turistas durante um desvio por Nicosia, no Chipre, Clinton chama o repórter.

“Esse pessoal é da Holanda”, diz ele, colocando o braço em torno de um casal queimado de sol, com as câmeras do telefone ligadas. “É o único país do mundo com cobertura de saúde 100%”, similar ao plano que sua mulher e Obama discutiram a respeito na primária democrata de 2008.

Presente para os convidados

Depois de várias paradas em Ruanda, Clinton e sua comitiva pegaram um voo curto para Uganda. Ali, ele se uniu a outros partidários para jantar no jardim do hotel Kampala Serena, na capital de Uganda, com o zumbido alto dos grilos ao fundo. Ele trocou o terno azul e camisa rosa que usou durante o dia para uma camisa casual estilo “guayabera” e calças cargo caqui. Em geral, ele troca de roupa pelo menos três vezes por dia durante suas viagens.

“Ele é igual a Lady Gaga”, disse um de seus assessores.

No jantar noturno casual, seu público cativo acena positivamente quando ele fala de realizações obscuras (“No Arkansas, saímos de 48% para 53% de matas quando eu deixei o cargo”) ou elogia a ministra da saúde de Ruanda (“Obama poderia substituir [Kathleen] Sebelius por ela amanhã, e eu o apoiaria”).

Clinton quer se assegurar de que suas obras de caridade valham a pena. Em uma visita a uma escola de ensino fundamental no distrito de Mpigi, no centro de Uganda, uma região rural fabricante de tijolos a meia hora de Kampala, George Srour, fundador e “principal sonhador” do grupo sem fins lucrativos que ajuda a levar escolas para a África subsaariana Building Tomorrow, disse a Clinton que precisava de mais fundos. Clinton apontou para Rumi Verjee, ugandense rico de ascendência indiana que mora no Reino Unido.

“Você está vendo aquele sujeito? É um dos empresários de maior sucesso de Uganda, e ele quer devolver ao país”, disse a Srour.

Clinton chamou Verjee: “Hey, Rumi, venha cá. Isso é uma extorsão!”

Um dia em Uganda, os assessores estavam na pista do aeroporto internacional de Entebbe, esperando alegremente a chegada de Bill Clinton.

“É ele?”, perguntou Chelsea Clinton, com a mão sobre os olhos enquanto olhava um helicóptero militar emergir no horizonte do final da tarde.

Quando pousou, um menino franzino de 14 anos usando um uniforme velho timidamente deu um passo à frente: Bill Clinton Kaligami. A mãe assim o batizou quando o ex-presidente visitou Uganda em 1998. Uma fotografia de Clinton segurando o menino com a mulher ao lado, usando ombreiras e um chapéu largo, está pendurada em sua casa em Chappaqua, NY.

“Ele nasceu no dia antes de chegarmos aqui”, disse Clinton minutos antes de abraçar o menino na pista. “Foi um dos dias mais memoráveis de minha presidência”.

Clinton concordou em pagar sua mensalidade escolar, uma medida que alguns assessores pensaram que estabeleceria um mau precedente. Clinton observou que na mesma excursão africana de 1998, um agricultor senegalês deu o nome dele a um bode.

“Da próxima vez, traremos o bode”, brincou.

Em cada perna da viagem, a comitiva a bordo do 737 discute teorias políticas sobre as chances de Hillary Clinton ser eleita presidente em 2016.

“Se Romney vencer, o partido tem que se unir em torno dela”, disse um dos patronos que não quis ser identificado.

Bill Clinton sorri quando pensa no alto índice de aprovação de sua mulher.

“Acho que o país a vê da forma que nós que a conhecemos a vemos”, disse ele. Mas sobre outra campanha presidencial, ele é mais reservado. “Ela aponta que não somos mais crianças, e muitas pessoas querem ser presidentes”, disse ele. “Mas eu acho que precisamos deixá-la descansar, e vou apoiar o que ela quiser fazer”.

Clinton claramente gostaria que tanto sua mulher quanto sua filha tivessem um papel em garantir o futuro da fundação.

“Estamos tentando reforçá-la para garantir seu funcionamento mesmo que eu morra amanhã”, disse ele.