Topo

Mordida em turista motiva matança de cães e causa polêmica na Indonésia

Cão passeia por praia em Kuta Beach, local do ataque à garota australiana - Ulet Ifansasti/The New York Times
Cão passeia por praia em Kuta Beach, local do ataque à garota australiana Imagem: Ulet Ifansasti/The New York Times

Joe Cochrane

Em Kuta Village (Indonésia)

09/03/2015 06h00

A controvérsia começou há algumas semanas, quando uma vira-lata pequena de cor creme chamada Sheila disparou inesperadamente debaixo de uma rede de deitar e mordeu a perna de uma menina australiana de dez anos

Kuta Beach, o lugar mais popular na ilha turística de Bali, é bem conhecida por ser boa para o surfe, pela cerveja gelada e pelos cães com aparência de sarnentos. Espécie de atração turística, eles normalmente são inofensivos, exceto quando não o são.

A mordida de Sheila em 27 de janeiro desencadeou uma série de eventos que mais uma vez mergulharam esta comunidade em um debate vigoroso sobre a população canina da ilha e sobre o esforço draconiano, segundo alguns moradores, do governo para controlá-los, poucos meses antes do auge da temporada turística.

Minutos após a mordida, membros da equipe de segurança de Kuta Village, armados com paus, chegaram na praia e rodearam o cão, que em pânico correu para a água, disseram testemunhas.

"Um homem perseguiu a cadela com o que parecia ser um remo grande e começou a bater repetidamente na cabeça dela, afogando-a de tempos em tempos", disse Praveen Elango, um turista indiano. "Outro homem se aproximou com um tijolo e o utilizou para bater nela."

Os turistas ficaram boquiabertos de horror. Sheila escapou e foi levada dali por um instrutor de surfe. A menina australiana foi levada às pressas para uma clínica próxima.

Mas no dia seguinte, os outros cães daquela parte de Kuta Beach, onde cerca de meia dúzia de cães de rua costumam perambular, tinham desaparecido. Pessoas que trabalham na praia dizem que o governo recolheu-os durante a noite e os matou.

"Normalmente os cães estão lá todos os dias, mas desde que isso aconteceu não vimos nenhum cão em Kuta Beach", disse Dedi Suherman, 35, instrutor de surfe que também disse ter testemunhado o espancamento de Sheila. "As pessoas estão com muita raiva."

Dois dias depois, o governador de Bali, I Made Mangku Pastika, convidou a população a ajudar o governo na matança de todos os cães de rua da ilha, que ele estimou em 500 mil animais.

"Por favor, ajudem", disse ele, de acordo com uma matéria do Kompas, um importante jornal diário indonésio. "Se você vir um cão de rua, simplesmente mate-o, elimine-o. Não deixe que eles fiquem por aí espalhando doenças. É perigoso e deixa as pessoas com medo.”

O governo de Bali oferece tratamento médico gratuito, inclusive com vacinas, a qualquer residente mordido por um cão de rua, mas o governador disse que a província estava sem dinheiro para comprar a vacina.

Em média, mais de 4 mil pessoas por mês foram mordidas por cães em Bali, uma ilha de 4 milhões de habitantes, de 2010 a 2012, de acordo com a Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas. Embora alguns cães tenham hidrofobia, nem sempre é possível saber se um cão que morde tem a doença, então o tratamento costuma ser sempre prescrito. Se não forem tratadas imediatamente, as pessoas podem morrer de raiva.

O governador convocou a população para matar cães de rua pela primeira vez em 2008, depois que a raiva apareceu na ilha. Ele tornou a fazê-lo em julho passado, reclamando da despesa com as vacinas e observando que os donos de cães estavam violando a lei ao permitir que seus animais de estimação andem livres.

"Não há nenhuma necessidade de pegá-los, colocá-los em um abrigo ou algo do tipo", disse ele em seguida, de acordo com o Jakarta Post. "Simplesmente os eliminem. É culpa do dono deixar o cão na rua.”

A imprensa local informou que mais de 120 cães foram abatidos, principalmente por funcionários de controle animal, em dois distritos remotos em dezembro e janeiro.

Os métodos mais comuns que o governo utiliza incluem atirar nos cães com dardos de estricnina ou administrar injeções letais, uma prática que foi denunciada por grupos de direitos dos animais e documentada em vídeos horríveis no YouTube.

"É uma forma terrível de morrer", disse Janice Girardi, uma norte-americano que vive em Bali há mais de 30 anos e fundou a Bali Animal Welfare Association, que fez campanha contra o abate. "É uma espécie de tortura."

Grupos de direitos dos animais denunciaram os comentários do governador como "um apelo para um massacre", que provavelmente matará também animais de estimação vacinados e saudáveis além dos cães raivosos.

Em Kuta Beach, moradores compartilharam por telefone celular e e-mail fotos de seus cães de praia desaparecidos usando as coleiras especiais que comprovem que eles tinham sido vacinados contra a raiva. Além disso, funcionários locais dizem que não houve nenhum caso de raiva relatado em cães ou seres humanos em Kuta Beach.

Questões econômicas e religiosas também entram no debate. Em se tratando de Bali, onde o turismo e setores relacionados respondem por cerca de 80% da economia, notícias de mordidas de cão e surtos de raiva prejudicam a imagem da ilha tropical paradisíaca.

"Muitas pessoas não gostam da ideia" de matar cães de rua, disse Wayan Suarsa, chefe de Kuta Village, "porque afeta nossa imagem. Mas em alguns casos, eles perturbam os turistas, e nós obviamente queremos expandir nosso setor de turismo.”

Mas outros moradores argumentam que os cães são uma parte importante da cultura nesta ilha historicamente hindu, como observado no Mahabharata, um antigo épico indiano, e merecem respeito. Putu Sumantra, chefe do departamento de criação de animais de Bali, disse que os comentários do governador "convidando" a população a matar cães de rua foram tiradas do contexto.

"Foi a população que pediu ao governo para fazer isso, quer durante reuniões locais ou pelos escritórios do governo", disse ele em uma resposta por escrito às perguntas da reportagem.

Ele disse que o governo continuará abatendo cães de forma "seletiva", incluindo cães semi-selvagens não vacinados, mas que a vacinação é a estratégia primária do governo para a erradicação da raiva. O governo já realizou operações de vacinação em massa e tem planos para mais uma de abril até julho.

Esse é o caminho certo, dizem especialistas em saúde pública. "A vacinação é a forma mais eficaz para acabar com a raiva", disse Eric Brum, especialista em raiva e conselheiro técnico chefe da agência de agricultura da ONU, que financiou o programa de vacinação contra a raiva em Bali até o ano passado e já treinou funcionários para capturar cães na ilha.

Tradutora: Eloise De Vylder