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Doe sangue ou vá preso: juiz dos EUA adota estratégia controversa e polemiza

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Imagem: Shutterstock

Campbell Robertson

Em Marion (Alabama)

26/10/2015 06h00Atualizada em 26/10/2015 15h47

O tribunal do juiz Marvin Wiggins estava lotado numa manhã de setembro. A lista de causas tinha centenas de infratores que deviam multas ou taxas por uma ampla variedade de crimes –entre eles caçar à noite, agressão, posse de drogas e cheques sem fundo.

"Bom dia, senhoras e senhores", começou Wiggins, que é juiz na zona rural do Alabama desde 1999. "Para vocês considerarem, há uma campanha de doação de sangue lá fora", ele continuou, de acordo com uma gravação da audiência. "Se você não tem nenhum dinheiro, vá lá e doe sangue e traga o recibo indicando que doou."

Para aqueles que não tinham dinheiro ou não queriam doar sangue, o juiz concluiu: "o xerife tem algemas suficientes".

Os esforços dos tribunais e governos locais para gerar receita impondo multas sobre delitos menores, cometidos especialmente por pessoas pobres e da classe trabalhadora, têm sido alvo de muita atenção e críticas nos últimos meses. Mas especialistas jurídicos e de saúde disseram que não conseguiam se lembrar de nenhum outro exemplo em que um tribunal praticamente ordenou que todos os criminosos doassem sangue em vez de pagar, ou enfrentar a cadeia. Todos eles concordaram que era inadequado.

"O que aconteceu está errado em cerca de 3.000 maneiras", disse Arthur Caplan, professor de ética médica do NYU Langone Medical Center, na Universidade de Nova York. "Você está basicamente condenando alguém a um procedimento invasivo que não vai beneficiar a pessoa e não está protegendo a saúde pública."

Contatado por telefone, Wiggins disse: "Não posso falar com você."

As dezenas de infratores que apareceram naquele dia, velhos e jovens, saíram do tribunal de Perry County e esperaram sua vez num banco de sangue móvel estacionado na rua. Disseram-lhes para levar o recibo para um funcionário, mostrando que eles tinham doado 473 ml de sangue, e em troca eles receberiam um crédito de US$ 100 na multa que deviam –e poderiam sair em liberdade.

Carl Crocker, que estava entre os que deviam dinheiro ao tribunal, contou ter visto um homem mais velho desmaiar depois que seu sangue foi tirado. Outra testemunha, Traci Green, disse que um jovem ficou tão irritado com a escolha que lhe foi apresentada que foi retirado do tribunal.

James M. Barnes Jr., um advogado que estava no tribunal naquela manhã, disse: "achei aquilo muito incomum."

“Não sei se é legal ou não. E não sei se isso infringe metade da Constituição", disse ele.

Na última segunda-feira (19), o Southern Poverty Law Center apresentou uma queixa ética contra Wiggins, dizendo que ele havia cometido "uma violação da integridade física". O grupo também se opôs à audiência para além da questão da coleta de sangue, dizendo que todo o procedimento foi anticonstitucional.

Audiências de pagamento como esta fazem parte de uma iniciativa dos tribunais do Alabama para arrecadar dinheiro cobrando multas pendentes, restituições, custos de tribunal e honorários advocatícios. Muitas das pessoas que são cobradas nessas audiências foram tidas como indigentes em determinado momento, mas muitas vezes sua situação financeira não é considerada quando elas são intimadas a pagar.

Várias pessoas que estavam presentes na audiência do dia 17 de setembro disseram não ter certeza se estavam sendo ordenadas a pagar o valor total ou a prestação mensal de costume, que muitos vinham pagando no prazo, às vezes por crimes que datam de uma década ou mais.

Green, 43, que deve milhares de dólares por causa de condenações relacionadas à maconha –uma delas de 1998– disse que ofereceu pagar o máximo que podia, mas foi levado a acreditar que tinha de doar sangue de qualquer forma.

"Ele nos disse que tínhamos que ir lá e doar um pouco de sangue ou então iríamos para a cadeira", disse Green. Ele disse que já doou sangue voluntariamente antes, mas como outros naquele dia, não queria ser obrigado a fazê-lo.

Crocker, 41, que gravou Wiggins, também gravou os funcionários do banco de sangue móvel, que pareciam plenamente conscientes do acordo de redução de sentença. Crocker disse que ficou ainda mais incomodado depois, quando reconheceu o banco de sangue, LifeSouth Community Blood Centers, que tinha perdido recentemente um julgamento de US$ 4 milhões por causa de uma transfusão de sangue infectada com HIV.

"Simplesmente está errado eles usarem as pessoas que estão no sistema judicial e extorquir o sangue delas porque devem multas de trânsito, cometeram delitos, contravenções, o que quer que seja", disse Crocker.

Jill Evans, vice-presidente da LifeSouth, que tem sede em Gainesville, Flórida, disse que o empregado que montou a campanha de doação de sangue com o tribunal agiu de forma inadequada porque ele entendeu que o juiz reduziria as obrigações de serviço comunitário para aqueles que estivessem dispostos a doar sangue, e isso viola as normas da empresa.

"Nós apreciamos a tentativa do juiz de ajudar a suprir a demanda de sangue da comunidade", disse Evans. "No entanto, a LifeSouth proíbe que as doações de sangue sejam consideradas serviço comunitário, pois isso seria um incentivo inaceitável para um doador voluntário."

Evans disse que, depois de receber uma denúncia, a LifeSouth fez uma quarentena e testou o sangue, tentou contatar todos os doadores e eventualmente descartou quase todas as unidades coletadas.

O registro na cadeia do condado mostra que ninguém foi levado em custódia naquele dia. O funcionário do tribunal disse numa breve entrevista que não tinha havido nenhuma intenção de prender ninguém; Crocker disse que isso aconteceu porque todo mundo decidiu que era melhor doar sangue do que ir para a cadeia.

No entanto, Sara Zampierin, advogada do Southern Poverty Law Center, disse que nos casos que ela revisou, de pessoas que doaram sangue, nenhuma recebeu os US$ 100 (R$ 394) de desconto que haviam sido prometidos.