Mural gigante faz homenagem a catadores de lixo, 'segunda classe' no Egito
O intricado mural ganhou forma nas últimas semanas, pouco percebido a princípio, espalhando-se por um agitado quarteirão do Cairo onde moram os coletores de lixo do Egito, em meio a uma montanha de fardos dos detritos desta cidade superpovoada.
Quando a pintura ficou pronta, há duas semanas, ocupava mais de 50 prédios, tornando-se a maior obra de arte da qual os moradores se lembram. O mural, um círculo amarelo, branco e azul em caligrafia arábica, cita um bispo cristão copta do século 3º: "Se alguém quiser ver a luz do sol, deve limpar os olhos".
Quando as primeiras fotos do mural circularam, as reações variaram de deleite e surpresa a descrença. Algumas pessoas, chocadas com sua escala aparentemente impossível, pareciam convencidas de que as imagens tinham sido modificadas digitalmente, segundo o criador do projeto, um artista franco-tunisiano conhecido como eL Seed.
Mas o que parecia mais surpreendente era que Seed e vários amigos que trabalharam com ele tenham terminado o projeto sem serem importunados ou presos.
O governo autoritário do Egito tem demonstrado pouca tolerância com os artistas: envia agentes em batidas a centros culturais e recentemente processou um romancista sob a acusação de que havia ferido a moral pública. Artistas de rua que fizeram da cidade sua tela nos dias tumultuosos após o levante egípcio em 2011 foram obrigados recentemente a trabalhar às pressas ou em segredo, realizando projetos "como se fossem um furto", disse Soraya Morayef, que nos últimos cinco anos documentou a arte de rua em seu blog.
Mas Seed escolheu um canto esquecido da cidade, chamado Manshiyat Naser, distante do olhar das autoridades, o tipo de lugar onde os artistas tiveram mais espaço para trabalhar, segundo Morayef.
Seed disse que pretendia mudar as percepções populares do bairro, muito associado à miséria, e comemorar as décadas de trabalho de seus moradores, que separam e reciclam toneladas de lixo produzidas pela cidade. Ele pintou grandes obras de caligrafia nos últimos anos em outros países, como Brasil, França e Tunísia, mas disse que a experiência e a reação no Egito foram "avassaladoras".
Seed atribuiu o sucesso de seu projeto, que foi totalmente autofinanciado, à sua decisão de trabalhar tranquilamente, com a cooperação dos moradores, mas também à sua ingenuidade como visitante. Isto significou ignorar as discussões nervosas que pareciam envolver muitas expressões públicas no Egito dos últimos tempos.
"Às vezes, quando você vem de fora, não vê todos os problemas que podem acontecer", disse ele em uma entrevista. "Estava tentando não olhar para a situação política e as dificuldades econômicas, apenas me concentrar no projeto artístico", disse ele.
O elogio veio do bairro, de jovens ativistas contrários ao governo e de outros artistas. Um conhecido artista de grafite egípcio, Ammar Abo Bakr, escreveu no Facebook que o mural "é o primeiro do gênero" no país.
"Imagine se nossos artistas que vendem sua arte por milhares de libras decidirem contribuir e sugerir algumas soluções para embelezar ou enriquecer as fachadas do Egito", escreveu ele.
Mais de 5.000 pessoas compartilharam uma postagem da declaração de Seed no Facebook e houve centenas de comentários, na maioria positivos, sugerindo que ele havia atingido seus objetivos. "Belas e honestas palavras", escreveu uma mulher do Egito. Os coletores de lixo "merecem nossa gratidão", acrescentou.
As autoridades pareceram tomadas de surpresa. A Embaixada do Egito em Washington promoveu o projeto em sua página do Twitter e disse estar "totalmente maravilhada".
Enquanto Seed planejava o mural, no último ano, ele foi ajudado por um sacerdote local, o reverendo Samaan Ibrahim, considerado um líder dos coletores de lixo do bairro, cuja maioria é da etnia copta. A aprovação do padre e a participação no projeto atraíram os moradores a participar, disse Seed.
O bairro foi fundado há mais de 40 anos, com sua localização à sombra de rochedos e suas ruas fétidas fazendo dele o mais notável de vários assentamentos onde vivem os coletores de lixo do Cairo. O bairro também recebeu ao longo dos anos a frequente atenção de organizações internacionais de ajuda e de jornalistas, tornando-se um dos assentamentos mais prósperos, segundo Gaétan du Roy, um pesquisador belga que estuda a vida religiosa dos coletores. Mas muitos de seus moradores são pobres e continuam sendo vistos como cidadãos de segunda classe devido a sua associação com o lixo, disse ele.
Suas relações com o governo também se tornaram tensas. As autoridades tentaram, em geral sem êxito, substituir os coletores de lixo e suas amplas famílias por companhias privadas mais modernas. Em um dos choques mais duradouros na área, o governo do ex-presidente Hosni Mubarak, reagindo a temores de uma epidemia de gripe suína em 2009, decidiu matar todos os porcos do país, inclusive os milhares criados pelos coletores, que os usavam para consumir o lixo orgânico e que também vendiam sua carne.
Das ruas do bairro, a pintura só é vista em fragmentos: acima de um pátio onde membros de uma família procuram cuidadosamente itens recicláveis nos sacos de lixo ou pairando sobre uma laje ocupada por alguns carneiros. A enorme escala do mural só é totalmente visível do monte Mokattam, na borda do bairro, perto de uma famosa catedral esculpida no interior de uma caverna.
Visto de lá, suas cores interrompem as monótonas fachadas de tijolos abaixo, distinguindo essas construções das milhares que brotaram pela cidade ao longo de décadas, com pouca supervisão, para abrigar a pujante população do Cairo.
Nos dias após a conclusão do mural, os moradores de Manshiyat Naser pareciam não prestar muita atenção em sua mensagem: muitas pessoas tinham de subir uma ladeira para ver completamente, e poucas tinham ideia do que dizia a caligrafia.
Mas as pessoas pareciam comovidas pelo fato de que Seed e seus amigos tivessem viajado até o Cairo e mergulhado naquele bairro, desprezando as calamidades que afastaram muitos visitantes do Egito nos últimos anos. A única queixa era que os artistas não tivessem pintado mais casas.
"Eles brincavam com as crianças aqui e conversavam com as pessoas", disse Boutros Ghali, um lojista de 24 anos que colocou uma foto dele com um dos visitantes, um jovem argelino, na parede de sua loja. "Os moradores gostavam deles e se habituaram, e quando eles partiram, as pessoas ficaram chateadas."
(*Joe Gabra colaborou na reportagem.)
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.