EI volta sauditas contra o reino e famílias contra si mesmas
Os homens não eram militantes treinados. Um era farmacêutico; outro, um técnico em aquecimento e refrigeração. Um era estudante do colegial.
Eram seis primos que viviam na Arábia Saudita, todos com um mesmo segredo. Tinham jurado fidelidade ao Estado Islâmico e pretendiam matar outro primo, um sargento da força de contraterrorismo do reino.
E foi o que fizeram. Em fevereiro, o grupo raptou o sargento Bader al-Rashidi, arrastou-o para a margem de uma estrada ao sul desta cidade, no centro da Arábia Saudita, e o matou a tiros. No vídeo que gravaram, eles condenaram a família real, dizendo que havia abandonado o islã.
Então fugiram para o deserto.
O vídeo se espalhou rapidamente, chocando um país que se esforça para conter um movimento terrorista considerado especialmente perigoso não apenas por promover a violência, mas também porque adotou elementos da versão saudita conservadora da religião --um credo sunita conhecido como wahabismo-- e os usou para deslegitimar a monarquia.
"O wahabismo é fundamental para a ideologia do Estado Islâmico", disse Cole Bunzel, um estudioso da história wahabita na Universidade Princeton (EUA) e autor de um recente trabalho sobre a Arábia Saudita e o EI. "Ele inspira o caráter de sua religião e é a característica mais visível, na minha opinião, de toda a sua ideologia."
De 20 episódios de terrorismo na Arábia Saudita desde o final de 2014, a morte de Rashidi foi o terceiro em que cidadãos se uniram secretamente ao EI e mataram parentes que pertenciam às forças de segurança.
Em cada caso, eles justificaram seus atos dizendo que a Arábia Saudita pratica uma versão corrompida da religião, acusação dirigida a um reino que se considera o único Estado islâmico verdadeiro.
O EI, como a Al Qaeda antes dele, acusa a monarquia saudita de corromper a fé para preservar seu poder. Mas as redes da Al Qaeda no reino foram desmanteladas anos atrás, e a liderança do grupo no estrangeiro não incentiva a morte de civis muçulmanos.
O EI, entretanto, conseguiu se infiltrar no reino por meio do recrutamento digital e encontrou devotos dispostos a matar outros sunitas, assim como xiitas, para desestabilizar a monarquia.
Em julho, um homem de 19 anos assassinou seu tio, um coronel de polícia, antes de efetuar um ataque suicida perto de uma prisão, ferindo dois guardas.
Em uma mensagem de áudio divulgada pelo EI após sua morte, ele se dirigiu a própria mãe: "Seu irmão apóstata era fiel aos tiranos", disse. "Se não fosse por ele, os tiranos não existiriam."
O major-general Mansour Turki, um porta-voz do Ministério do Interior saudita, disse que os ataques terroristas dos últimos dois anos mataram dezenas de pessoas, entre elas cerca de duas dúzias de militantes. Além disso, cerca de 3 mil sauditas aderiram a grupos militantes no exterior e mais de 5 mil foram presos no país acusados de terrorismo, um grande aumento nos últimos anos.
A Arábia Saudita tem uma história emaranhada com grupos militantes islâmicos. Durante muito tempo, o país os apoiou como forças substitutas para impor sua agenda em lugares como Bósnia, Chechênia e Afeganistão (onde atuou junto com os EUA). Mas isso acabou em grande parte em 2003, quando a Al Qaeda se concentrou no reino e efetuou uma série de atentados mortais.
Agora o EI representa um novo desafio, voltando contra a Arábia Saudita alguns aspectos de sua fé conservadora. O wahabismo foi moldado ao longo dos anos para servir aos interesses da monarquia, enfatizando a obediência aos governantes e condenando os ataques terroristas, mesmo contra os considerados apóstatas.
Mas entre os muitos inimigos do EI a Arábia Saudita é o único que considera o Alcorão e outros textos religiosos sua Constituição, criminaliza a apostasia e proíbe todas as formas de religião não aprovada em público.
As autoridades sauditas rejeitam comparações entre sua ideologia e a do EI, comentando que milhões de não muçulmanos vivem no país e que o governo é estreitamente aliado aos EUA e participa da campanha americana contra o grupo militante. Elas também dizem que o islamismo saudita não promove o califado, como faz o EI, e que os religiosos graduados condenam os atentados terroristas e consideram o grupo um "desvio".
Mas os críticos afirmam que muitos religiosos sauditas nunca renunciaram a aspectos da tradição wahabita que o EI adotou, especialmente em relação aos xiitas, que formam cerca de 10% dos 20 milhões de cidadãos do reino. Muitos religiosos sauditas consideram os xiitas hereges e os acusam de lealdade ao adversário regional da Arábia Saudita, o Irã.
Os jihadistas exploraram isso repetidamente, ao lançar ataques suicidas a mesquitas xiitas e depois acusar os religiosos sauditas de hipocrisia por condenarem a violência.
"É claramente difícil para os clérigos sauditas condenar totalmente os ataques aos xiitas", disse Bunzel. "E temos a sensação de que eles não se importam muito que os xiitas sejam atacados, já que do seu ponto de vista não são realmente muçulmanos."
Como em outras partes do mundo, o EI contou com as redes sociais para alcançar o interior do reino saudita, encontrar recrutas e enviá-los ao ataque, muitas vezes à vista de seus parentes mais próximos.
Isto tornou difícil evitar as tramas, disse Turki, citando o exemplo de um homem preso no ano passado depois de matar dois policiais com tiros disparados de um carro perto de Riyad. Um defensor do EI lhe havia dado o carro e outro, fornecido a arma, mas o atacante nem sequer sabia seus nomes.
Mas o grupo se esforçara para atingir as forças de segurança, por isso disse aos recrutas para matar oficiais de suas próprias famílias. Turki resumiu sua mensagem como: "Vocês estão mais perto, por isso ninguém os conhecerá".
Em setembro, dois homens raptaram seu primo, um soldado do Exército saudita, e filmaram um vídeo com ele amarrado e pedindo piedade na areia enquanto eles juravam fidelidade ao EI e o matavam a tiros. As forças de segurança mataram um deles e prenderam o outro.
Logo depois veio o rapto e assassinato de Rashidi pelos seis primos, após um processo de radicalização que ninguém na família percebeu.
O líder do grupo, Wael al-Rashidi, que se dirigiu à câmera no vídeo, tinha diploma de farmacêutico e trabalhava em um hospital em Riad, disseram dois irmãos dele em uma entrevista. Ele fumava cigarros, prática proibida pelos muçulmanos mais devotos, e passava horas "hackeando" em seu computador ou jogando jogos de guerra em seu Xbox.
Um dos dois irmãos que entraram no complô tocava alaúde, atividade que os conservadores também reprovam.
Três outros atacantes eram estudantes universitários; dois eram irmãos e os outros, companheiros de quarto, que estudavam a xariá na universidade estatal de Riad.
Cerca de dois anos atrás, Wael al-Rashidi se tornou mais religioso e se afastou das atividades familiares, mas isso não despertou alarme em uma sociedade em que é comum o conservadorismo religioso.
"Todos vimos que ele estava deixando a barba crescer e frequentando a mesquita, mas aqui muita gente é assim, por isso não tínhamos ideia de que estivesse planejando outra coisa", disse o irmão adotivo de Rashidi, Mishari.
Ainda mais surpreendente foi que o pai de Wael era um oficial aposentado do serviço de inteligência interna, órgão encarregado de detectar ameaças jihadistas, disseram os irmãos de Rashidi. O pai de outro atacante ainda trabalha nessa força.
"Talvez ele não soubesse, ou tivesse medo de denunciá-lo, ou pensasse que ele se endireitaria", disse um dos irmãos de Rashidi, Bandar. "Só ele sabe."
Embora os atacantes não fossem pessoalmente próximos de Rashidi, disseram-lhe que tinham um presente de sua mãe que queriam lhe entregar. Rashidi os encontrou e eles o raptaram e mataram algumas horas depois.
O temor da família aumentou nos dias seguintes, pois os parentes notaram que seus filhos estavam ausentes e tinham desligado seus telefones. Então o EI divulgou o vídeo, confirmando as suspeitas da família.
Em 11 de março, forças de segurança sauditas localizaram os seis homens em um local remoto e mataram a todos em um tiroteio, segundo a mídia local.
Os irmãos de Rashidi estão contentes que os seis tenham sido mortos, mas o episódio os deixou profundamente desconfiados.
"Se alguém ligar e disser 'Onde você está? Quero vê-lo', não confio mais", disse Bandar. "Não confiamos em ninguém."
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