À sombra de Hiroshima, Nagasaki reclama do esquecimento
Quando Miyako Jodai tinha 6 anos, os EUA despejaram uma bomba atômica sobre sua cidade, Nagasaki, um importante porto do Japão.
Ela caiu inconsciente e sua casa foi destruída. Depois disso, a menina passou vários dias amontoada com dezenas de pessoas em uma caverna na encosta de uma montanha.
"Eu estava muito assustada", contou ela. "Eu chorava e pisava nos corpos de pessoas feridas, porque não havia espaço para andar." Quando finalmente ela se aventurou a sair, a cidade ainda estava tomada por chamas gigantescas.
Jodai foi um dos que tiveram sorte. A bomba que foi detonada sobre Nagasaki na manhã de 9 de agosto de 1945 matou cerca de 74 mil pessoas, aproximadamente a metade do número que havia morrido no bombardeio de Hiroshima três dias antes.
Nesta sexta-feira (27), o presidente Barack Obama se tornará o primeiro presidente americano em exercício desde o fim da Segunda Guerra Mundial a visitar Hiroshima. Nagasaki não está no itinerário.
Se a referência a Hiroshima tornou-se um símbolo internacional dos horrores da guerra nuclear, Nagasaki, na ilha de Kyushu, no sudoeste do Japão, viveu principalmente à sombra da outra cidade.
"Sabemos que a montanha mais alta do Japão é o monte Fuji", disse Tomihisa Taue, prefeito de Nagasaki, em uma entrevista em seu gabinete. "Mas não sabemos qual é a segunda mais alta."
Muitos reconhecem que Hiroshima, de certa maneira, representa as duas cidades. Dizem que a mensagem que o mundo deve ouvir com a visita de Obama --que as armas nucleares não devem ser usadas novamente-- não exige que ele ponha os pés na cidade.
Taue sugeriu que Nagasaki também poderia servir como um encerramento poderoso para a abertura da era nuclear em Hiroshima. "Eu gostaria que o presidente dissesse de Nagasaki para o mundo que este lugar deveria ser o último na Terra a experimentar o bombardeio atômico", disse ele.
Se aceitarmos o raciocínio do presidente americano na época, Harry Truman, de que o ataque a Hiroshima foi necessário para obrigar o Japão a se render e a encerrar a guerra, o cálculo moral para despejar uma segunda bomba sobre uma população civil três dias depois é mais polêmico.
Cerca de 700 mil pessoas por ano visitam o Museu da Bomba Atômica de Nagasaki, comparadas com quase 1,5 milhão que vão ao Memorial da Paz de Hiroshima, onde Obama depositará uma coroa de flores na sexta-feira.
Mesmo no escritório do Conselho de Sobreviventes da Bomba Atômica em Nagasaki, um adesivo colado a um armário ilustra a posição secundária da cidade --"Hiroshima nunca mais: acabem com a corrida armamentista já".
Jodai, hoje com 76 anos e uma professora aposentada, disse que admira a decisão do presidente americano de visitar Hiroshima e compreende que sua agenda não permite a visita às duas cidades. Mas os sobreviventes de Nagasaki deveriam pelo menos ser convidados à cerimônia em Hiroshima, disse.
"Sinto como se Nagasaki estivesse abandonada, jogada fora."
Enquanto o Japão luta com sua própria história de atrocidades durante a guerra e acadêmicos e políticos aqui e nos EUA continuam discutindo o uso da bomba atômica, Nagasaki, de muitas maneiras, oferece uma narrativa mais complexa que a de Hiroshima.
Uma das primeiras cidades japonesas a ter contato com comerciantes ocidentais, incluindo exploradores portugueses e holandeses, Nagasaki também é o mais antigo e denso bastião do catolicismo no Japão.
Quando os pilotos americanos despejaram a bomba, a devastação atingiu a Catedral de Urakami, então a maior no leste da Ásia. Cerca de 8 mil católicos da região foram mortos.
Para os cristãos de Nagasaki, há muito discriminados no Japão por causa da religião, uma verdade mais dura foi que sua comunidade foi destruída por um país predominantemente cristão, em uma missão abençoada por um capelão católico.
O legado católico de Nagasaki, combinado com o papel veemente de Hiroshima como centro de atividades antinucleares, ajudou a dar origem ao ditado japonês : "Ikari no Hiroshima, inori no Nagasaki", ou "Hiroshima grita, Nagasaki reza".
Em uma missa às 6h na segunda-feira, cerca de cem paroquianos estavam sentados em longos bancos de madeira na catedral, reconstruída perto do local original. O reverendo Ritsuo Hisashi, o padre diretor, disse estar menos preocupado que Nagasaki seja considerada um símbolo global do que com o apelo à eliminação das armas nucleares.
A arquidiocese de Nagasaki, juntamente com outras 15 no Japão, também se opõe às iniciativas do primeiro-ministro Shinzo Abe de reformar a Constituição pacifista do país, imposta pelos EUA depois da guerra.
Os líderes de Nagasaki também foram francos ao admitir os atos do Japão na guerra antes que os EUA despejassem as bombas.
Em 1990, Hitoshi Motoshima, então prefeito de Nagasaki, foi ferido a tiros por um nacionalista de direita depois que sugeriu que o imperador Hirohito assumisse sua responsabilidade pela Segunda Guerra Mundial.
Mais ou menos nessa época, um vereador da cidade, Masaharu Oka, fundou um museu para comemorar os trabalhadores coreanos que foram recrutados para trabalhar em fábricas em Nagasaki durante a guerra e que foram mortos ou feridos pela bomba atômica.
Abrigado em um antigo restaurante chinês em um morro íngreme, o museu tem um aspecto artesanal. Além de fotografias de sobreviventes coreanos e uma réplica dos locais lotados onde viviam os trabalhadores coreanos, o museu exibe uma galeria de fotos do Estupro de Nanquim, na China, e da Unidade 731, o centro de pesquisa biológica e química onde cientistas japoneses fizeram experimentos com seres humanos na China.
Toshiaki Shibata, o ex-secretário-geral do museu de Masaharu Oka e filho de dois sobreviventes da bomba, disse estar feliz porque Obama não visitará Nagasaki. Shibata, 65, cujo cabelo tingido de lilás lhe dá um ar atrevido, afirma que a visita de Obama pretende apoiar os esforços de Abe para mudar a Constituição e levar o Japão à guerra.
"Seria melhor que ele não viesse", afirmou Shibata.
Yoshitoshi Fukahori, 87, um sobrevivente da bomba, disse que não compreende muito bem a comoção sobre a visita de Obama. Embora ele lhe dê as boas-vindas e aprove que o presidente fale sobre um mundo livre de armas nucleares, disse que não espera muito da visita. Não é necessária, acrescentou.
"Depois de uma longa experiência, vejo pessoas ficarem esperançosas e depois se decepcionarem", explicou ele. "Por isso não quero dar muito valor às palavras."
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