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Como a Rússia se beneficia quando Julian Assange revela segredos do Ocidente

Julian Assange, fundador do WikiLeaks, observa movimentação da janela da Embaixada do Equador em Londres - Ben Stansall/ AFP
Julian Assange, fundador do WikiLeaks, observa movimentação da janela da Embaixada do Equador em Londres Imagem: Ben Stansall/ AFP

Jo Becker, Steven Erlanger e Eric Schmitt

02/09/2016 06h00

Julian Assange estava em seu modo didático clássico, alongando-se sobre o tema que o consome: a perfídia do grande governo, especialmente o dos EUA.

Assange, o editor do WikiLeaks, ganhou fama global em 2010 por divulgar grande quantidade de comunicações altamente secretas do governo americano, que expuseram o lado mais vulnerável de suas guerras com o Afeganistão e o Iraque e suas manobras diplomáticas às vezes cínicas ao redor do mundo. Mas em uma entrevista pela televisão em setembro do ano passado ficou claro que ele ainda tinha muito a dizer sobre "O mundo segundo o império americano", subtítulo de seu último livro, "The WikiLeaks Files" [Os arquivos do WikiLeaks].

Dos recantos abarrotados da Embaixada do Equador em Londres, onde ele recebeu asilo há quatro anos, em meio a um imbróglio jurídico, Assange ofereceu uma visão dos EUA como um ser extremamente prepotente: uma nação que alcançou o poder imperial proclamando fidelidade a princípios de direitos humanos enquanto usa seu aparato militar e de inteligência em formação de "pinça" para "forçar" os países a fazer o que deseja e castigar as pessoas que ousam falar a verdade, como ele.

Mas nas análises de Assange foi notável a ausência de crítica a outra potência mundial, a Rússia, ou a seu presidente, Vladimir Putin, que dificilmente se enquadra no ideal de transparência do WikiLeaks. O governo de Putin reprimiu duramente a dissidência --espionando, prendendo e, segundo os críticos, às vezes assassinando os adversários enquanto consolidava o controle da mídia e da internet. Se Assange apreciou a ironia do momento --denunciar a censura em uma entrevista ao "Russia Today", o canal de propaganda em inglês controlado pelo Kremlin-- não ficou imediatamente claro.

Hoje Assange e o WikiLeaks estão novamente sob os holofotes, perturbando a paisagem geopolítica com novas revelações e a promessa de outras mais.

Em julho, a organização divulgou quase 20 mil e-mails do Comitê Democrata Nacional, sugerindo que o partido havia conspirado com a campanha de Hillary Clinton para minar seu principal oponente, o senador Bernie Sanders. Assange, que tem criticado Hillary abertamente, prometeu novas revelações que poderiam abalar sua campanha contra o candidato republicano, Donald Trump. Em separado, o WikiLeaks anunciou que em breve lançará algumas joias da coroa da inteligência americana: um conjunto "virgem" de códigos de ciberespionagem.

Autoridades americanas disseram acreditar com alto grau de certeza que o material do Partido Democrata foi hackeado pelo governo russo, e suspeitam que os códigos também tenham sido roubados pelos russos. Isso levanta uma pergunta: o WikiLeaks se tornou uma máquina de lavar do material comprometedor obtido pelos espiões russos? E, de maneira mais ampla, qual é exatamente o relacionamento entre Assange e o Kremlin de Putin?

Essas perguntas tornam-se ainda mais agudas devido ao lugar proeminente da Rússia na campanha presidencial dos EUA. Putin, que se chocou repetidamente com Hillary quando ela era secretária de Estado, elogiou publicamente Trump, que devolveu o cumprimento, pedindo laços mais estreitos com a Rússia e falando favoravelmente sobre a anexação da Crimeia por Putin.

Assange promete divulgar novos documentos de Hillary Clinton

Band News

Desde o início do WikiLeaks, Assange disse que era motivado pelo desejo de usar "a criptografia para proteger os direitos humanos", e que se concentraria em governos autoritários como o russo.

Mas um exame feito por "The New York Times" das atividades do WikiLeaks durante os anos de exílio de Assange encontrou um outro padrão: seja por convicção, conveniência ou coincidência, as liberações de documentos feitas pelo WikiLeaks, juntamente com muitas declarações de Assange, com frequência beneficiaram a Rússia, em detrimento do Ocidente.

Entre as autoridades americanas, o consenso emergente é que Assange e o WikiLeaks provavelmente não têm ligações diretas com os serviços de inteligência russos. Mas eles dizem que, pelo menos no caso dos e-mails democratas, Moscou sabia que tinha um canal simpático no WikiLeaks, onde intermediários poderiam colocar documentos roubados na caixa de entrada anônima do grupo.

Em uma entrevista ao "Times" na última quarta-feira (31), Assange disse que Hillary Clinton e os democratas estão "instigando uma histeria neomacarthista sobre a Rússia". "Não há evidência concreta" de que as publicações do WikiLeaks venham de agências de inteligência, disse ele, embora tenha indicado que aceitaria de bom grado esse material.

Diante dos recursos limitados do WikiLeaks e dos obstáculos à tradução, disse Assange, por que se concentrar na Rússia, que ele descreveu como "um pequeno ator no palco mundial", comparado com países como a China e os EUA? Em todo caso, disse ele, a corrupção no Kremlin é uma história antiga. "Todo homem e seu cachorro criticam a Rússia", afirmou. "É um pouco entediante, não é?"

Desde sua criação, o WikiLeaks teve um sucesso espetacular em algumas frentes, descobrindo assassinatos, hipocrisia e corrupção indiscriminados e ajudando a detonar a Primavera Árabe.

Os fatos recentes, porém, levaram alguns defensores da transparência a se perguntar se o WikiLeaks perdeu o rumo. Há uma grande diferença entre publicar materiais de uma denunciante como Chelsea Manning --o soldado que deu ao WikiLeaks seu diário de guerra e furos dos telegramas diplomáticos-- e aceitar informação, mesmo indiretamente, de um serviço de inteligência estrangeiro que deseja promover seus próprios interesses poderosos, disse John Wonderlich, diretor-executivo da Sunlight Foundation, grupo dedicado à transparência no governo.

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Imagem sem data, fornecida pelo Exército dos EUA, do soldado Bradley Manning, usando batom e peruca
Imagem: Arquivo/Exército dos EUA

"Eles estão simplesmente se alinhando com quem lhes der informação, para conseguir atenção ou vingança de seus inimigos", disse Wonderlich. "Eles aprovam que os governos 'hackeiem' uns aos outros e perturbem os respectivos processos democráticos, tudo sobre um caso bastante fraco para o interesse público."

Outros creem que Assange adota uma abordagem cada vez mais limitada do mundo, que, juntamente com o próprio sigilo dele, os deixou desiludidos.

"A batalha pela transparência deveria ser global; pelo menos Assange afirmou isso no começo", disse Andrei A. Soldatov, um jornalista investigativo que escreveu extensamente sobre os serviços secretos da Rússia.

"É estranho que esse princípio não esteja sendo aplicado ao próprio Assange e a seus negócios com um determinado país, que é a Rússia", disse Soldatov. "Ele parece pensar que pode se comprometer muito lutando contra um mal maior."

No final de novembro de 2010, as autoridades americanas anunciaram uma investigação do WikiLeaks. Hillary, cujo departamento de Estado foi abalado pelo que ficou conhecido como "Cablegate", prometeu tomar medidas "agressivas" para acusar os responsáveis.

No mês seguinte, Assange foi preso pela polícia de Londres para enfrentar interrogatório pelos suecos, que ele temia que o entregassem aos americanos. Libertado sob fiança, ele se escondeu e combateu a extradição em uma casa de campo georgiana de propriedade de um apoiador, Vaughan Smith, que em uma entrevista disse acreditar que Assange foi vítima de uma "intensa [campanha] de bullying e desinformação online".

Um dia após a prisão de Assange, o presidente russo apareceu em uma entrevista coletiva com o primeiro-ministro francês. Dispensando um jornalista que sugeriu que os telegramas diplomáticos retratavam a Rússia como não democrática, Putin usou a oportunidade para criticar o Ocidente.

"No que se refere à democracia, deveria ser uma democracia completa. Por que então colocaram Assange atrás das grades?", perguntou ele. "Há um ditado americano: quem tem telhado de vidro não deve atirar pedras."

Foi a primeira de várias vezes em que Putin assumiu a causa de Assange. Ele chamou as acusações contra Assange de "politicamente motivadas" e declarou que o fundador do WikiLeaks está sendo "perseguido por disseminar a informação que recebeu dos militares americanos sobre os atos dos EUA no Oriente Médio, incluindo o Iraque".

Em janeiro de 2011, o Kremlin emitiu um visto para Assange, e uma autoridade russa sugeriu que ele merecia o Prêmio Nobel da Paz. Depois, em abril de 2012, com as verbas do WikiLeaks secando --sob pressão dos EUA, os cartões Visa e Mastercard pararam de aceitar doações---, o "Russia Today" começou a emitir um programa chamado "O Mundo Amanhã", que tinha Assange como anfitrião. Não está claro quanto ele ou o WikiLeaks ganharam pelos 12 episódios.

Mas em 19 de junho de 2012 a narrativa de Assange rapidamente assumiu um rumo diferente. Ele infringiu a condicional após perder uma apelação contra a extradição à Suécia e recebeu asilo na pequena Embaixada do Equador em Londres.

Um ano depois, um homem que logo eclipsaria Assange em termos de fama como denunciante embarcou em um avião em Hong Kong. Seu nome era Edward J. Snowden e ele era um fornecedor da Agência de Segurança Nacional dos EUA que se tornou fugitivo, surpreendendo o mundo e tensionando as alianças dos EUA ao vazar documentos que revelaram uma rede de programas de vigilância global liderada pelos americanos.

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Edward Snowden fala de maneira remota durante conferência em Cambridge, EUA
Imagem: Kayana Szymczak/The New York Times

Snowden não havia dado milhares de documentos secretos ao WikiLeaks. Mas foi por sugestão de Assange que o voo em que Snowden embarcou em 23 de junho de 2013, acompanhado de sua colega do WikiLeaks Sarah Harrison, rumou para Moscou, onde Snowden continua até hoje depois que os EUA cancelaram seu passaporte.

Na verdade, temendo ser considerado um espião, Snowden esperava apenas passar pela Rússia a caminho da América do Sul, como Assange contou mais tarde, plano que ele não havia aprovado completamente. Ele acreditava que a Rússia poderia proteger Snowden melhor de um sequestro da CIA ou coisa pior.

"Então eu pensei, e na verdade aconselhei Edward Snowden que ele ficaria mais seguro em Moscou", disse Assange ao programa de notícias Democracy Now.

Durante o tempo que passou isolado na Embaixada do Equador, sob constante vigilância, sua desconfiança instintiva do Ocidente se reforçou mesmo quando ele se tornou cada vez mais insensível aos abusos do Kremlin, que considerava um "baluarte contra o imperialismo ocidental", disse um seguidor, que como muitos outros pediu para manter o anonimato por medo de irritar Assange.

Outra pessoa que colaborou com o WikiLeaks no passado acrescentou: "Ele vê tudo pelo prisma de como ele é tratado. Os EUA e Hillary Clinton lhe causaram problemas, e a Rússia não".

O resultado foi um "confronto unidimensional com os EUA", disse Daniel Domscheit-Berg, que antes de deixar o WikiLeaks em 2010 foi um dos mais próximos parceiros de Assange.