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Opinião: Você esconderia um judeu dos nazistas?

Refugiados caminham nos trilhos de trem próximo à fronteira entre Sérvia e Hungria - Sergey Ponomarev/The New York Times
Refugiados caminham nos trilhos de trem próximo à fronteira entre Sérvia e Hungria Imagem: Sergey Ponomarev/The New York Times

Nicholas Kristof

20/09/2016 06h00

Quando representantes dos Estados Unidos e de outros países se reuniram em Evian, na França, em 1938, para discutir a crise dos refugiados judeus causada pelos nazistas, eles exalaram simpatia pelos judeus, além de desculpas explicando por que eles não poderiam acolhê-los. Quem comprou a briga então foi uma mulher de 33 anos de Massachusetts chamada Martha Sharp.

Com nervos de aço, ela conduziu um jornalista antinazista passando por postos policiais em uma Praga ocupada por nazistas até um lugar seguro ao fingir que ele era seu marido.

Em outra ocasião, ela atravessou a Alemanha de trem levando escondidos proeminentes opositores judeus do nazismo, inclusive um cirurgião de destaque e dois jornalistas, fingindo que eles eram seus funcionários domésticos.

"Se a Gestapo nos acusasse de ter ajudado os refugiados a escapar, a prisão seria uma sentença leve", ela escreveu posteriormente em um livro de memórias não publicado. "Tortura e morte eram as punições mais comuns."

Sharp foi para a Europa porque a Igreja Unitária havia pedido que ela e seu marido, Waitstill Sharp, um pastor da Unitária, ajudassem refugiados judeus. Dezessete outros recusaram a missão, mas os Sharp concordaram, e deixaram para trás seus dois filhos pequenos em Wellesley, Massachusetts.

A história deles é contada em um oportuno e impressionante documentário novo de Ken Burns, "Defying the Nazis: The Sharps' War" (Desafiando os nazistas: a guerra dos Sharp). O documentário será transmitido pela PBS na noite de terça-feira, justamente quando líderes mundiais estarão concluindo dois dias de reuniões na Cidade de Nova York a respeito da crise mundial de refugiados que o mundo enfrenta hoje, algo parecido com o que aconteceu no final dos anos 1930.

"Existem paralelos", observa Artemis Joukowsky, neto dos Sharp que idealizou o filme e trabalhou nele juntamente com Burns. "A causticidade nos discursos, a xenofobia, a acusação contra os muçulmanos como se fossem responsáveis por todos nossos problemas, isso é semelhante ao antissemitismo dos anos 1930 e 1940."

A história dos Sharp é um lembrete de que na última grande crise dos refugiados, nos anos 1930 e 1940, os Estados Unidos negaram vistos para a maioria dos judeus. Nós temíamos um fardo econômico e estávamos preocupados que pudessem haver espiões entre eles. Foram os nazistas que cometeram o genocídio, mas os Estados Unidos e outros países também têm uma responsabilidade moral por se negarem a ajudar pessoas desesperadas.

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Esse é um pensamento sobre o qual líderes mundiais deveriam refletir enquanto se reúnem em Nova York para discutir a atual crise dos refugiados. Eles poderiam encontrar inspiração naqueles que, assim como os Sharps, viram a humanidade nos refugiados e hoje são lembrados por causa disso.

Como na Polônia, por exemplo, onde os poloneses responderam à ocupação nazista assassinando judeus, enquanto a resistência polonesa (incluindo a família do meu pai, tenho orgulho em dizer) lutava e tentava despertar a consciência do mundo. Um polonês, Witold Pilecki, entrou escondido em Auschwitz para reunir informações e alertar o mundo sobre o que estava acontecendo.

Da mesma maneira, um fazendeiro polonês chamado Jozef Ulma e sua mulher, Wiktoria, abrigaram membros desesperados de duas famílias judias em sua casa. Os Ulmas tinham seis filhos pequenos e toda razão do mundo para serem cautelosos, mas em vez disso eles demonstraram compaixão.

Alguém os denunciou, e a Gestapo invadiu a casa dos Ulmas. Os nazistas primeiro mataram os judeus, e depois retaliaram ao executarem não somente Jozef e Wiktoria (que estava grávida de sete meses), mas também todos seus filhos. A família inteira foi massacrada.

Outro grande herói foi Aristides de Sousa Mendes, que era cônsul-geral português na França quando a guerra começou.

Portugal emitiu instruções precisas a seus diplomatas para que negassem a maioria dos pedidos de vistos aos judeus, mas Sousa Mendes violou essas ordens. "Prefiro ficar do lado de Deus e contra o homem", ele disse, "a ficar do lado do homem e contra Deus."

Segundo algumas estimativas, ele emitiu vistos para 30 mil refugiados.

Furioso com a insubordinação, o ditador de Portugal convocou Sousa Mendes e o submeteu a julgamento por violação de ordens. Sousa Mendes foi condenado e sua família inteira entrou em uma lista negra, de forma que quase todos seus filhos foram obrigados a emigrar. Sousa Mendes sobreviveu comendo em sopões e vendendo móveis da família; ele morreu em 1954 na pobreza, na desgraça e endividado.

"A família foi destruída", observa Olivia Mattis, presidente de uma fundação criada em 2010 em homenagem a Sousa Mendes, que salvou a família de seu pai.

Os líderes de hoje que se reúnem para suas sessões de cúpula deveriam lembrar que a História no fim está do lado daqueles que ajudam os refugiados, e não daqueles que os menosprezam.

Atualmente, somente alguns poucos líderes têm demonstrado verdadeira coragem moral a respeito dos refugiados --parabéns a Angela Merkel e a Justin Trudeau--, e até mesmo a modesta disposição do presidente Barack Obama em aceitar 10 mil sírios o levou a ser criticado por Donald Trump.

Sem uma maior vontade política, as reuniões desta semana podem ser lembradas como uma repetição da Conferência de Evian de 1939, e a História não perdoará.

"Precisamos pensar o heroísmo de Sousa Mendes no contexto de hoje", diz Jorge Helft, um sobrevivente do Holocausto que, quando era um menino, recebeu um dos vistos de Sousa Mendes. "Tem jantares em Paris onde as pessoas começam a dizer que temos de expulsar toda essa gente, que há pessoas perigosas entre eles". Ele para por um momento e acrescenta: "Lembro-me de estar em um navio para Nova York e ouvindo que alguns americanos não queriam nos deixar entrar porque havia espiões nazistas entre nós."

"Sim, talvez houvesse alguns espiões nazistas, mas era uma pequena minoria", ele diz, assim como pode haver espiões entre os refugiados sírios hoje, mas também uma pequena minoria. "Noventa e cinco por cento ou mais dessas pessoas são decentes, e elas estão fugindo da morte. Então não vamos esquecê-las."

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AFP