Inquérito sobre estupro de mexicanas por policiais pode ser novo baque a Peña Nieto
As autoridades internacionais de direitos humanos estão exigindo uma investigação dos brutais ataques sexuais cometidos contra 11 mexicanas durante protestos há dez anos --um inquérito que visaria o presidente Enrique Peña Nieto, que era o governador do Estado do México na época dos ataques.
A demanda faz parte de uma análise feita ao longo de anos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre abusos praticados durante a repressão ordenada em 2006 por Peña Nieto em San Salvador Atenco, cidade do Estado do México onde manifestantes haviam ocupado a praça central. Durante as operações, que deixaram dois mortos, mais de 40 mulheres foram detidas com violência pela polícia, embarcadas em ônibus e enviadas à cadeia a várias horas de distância.
O caso foi aberto por 11 mulheres diante da comissão internacional, que descobriu que a polícia as torturou sexualmente. As mulheres --entre as quais havia comerciantes, estudantes e ativistas-- foram estupradas, espancadas, penetradas com objetos metálicos, roubadas e humilhadas, obrigadas a cantar para divertir a polícia. Uma foi obrigada a praticar sexo oral em vários policiais. Depois que as mulheres foram presas, passaram-se dias antes que recebessem exames médicos apropriados, segundo a comissão.
"Eu ainda não superei isso, nem um pouco", disse uma das mulheres, María Patricia Romero Hernández, chorando. "É uma coisa que me assombra, você não supera. Fica com você."
Para Peña Nieto, o pedido de investigação feito pela comissão de direitos humanos é mais um golpe contra uma presidência sitiada. Os escândalos de corrupção e constante violência já levaram seus índices de aprovação ao nível mais baixo dentre todos os presidentes mexicanos em 25 anos.
Seu convite a Donald Trump, o candidato presidencial republicano dos EUA que é desprezado no México por suas declarações críticas aos imigrantes mexicanos, fez seu governo cair em uma controvérsia ainda maior.
Os ataques também lembram inúmeros outros casos no país que ficaram sem solução, incluindo o incrível desaparecimento de 43 estudantes colegiais há dois anos. Autoridades internacionais afirmam que a investigação desse caso foi enfraquecida ativamente pelo governo de Peña Nieto.
Mas para a comissão internacional os esforços do México para investigar o abuso até agora foram insuficientes. Ela exigiu um inquérito mais abrangente para descobrir as responsabilidades em toda a cadeia de comando, o que provavelmente incluiria Peña Nieto na investigação, porque ele ordenou a repressão.
A entidade também pediu uma ação disciplinar ou criminal contra as autoridades que contribuíram para a negação de justiça às mulheres.
A comissão entregou suas conclusões na semana passada ao tribunal interamericano, um judiciário independente com autoridade legal no México. Se o tribunal concordar com a comissão, poderá ordenar que o México amplie seu atual inquérito do caso, uma exigência que poderá forçar o Estado a investigar seu presidente.
O caso é um exemplo das dificuldades que as vítimas enfrentam para obter justiça no México. As mulheres suportaram mais de dez anos de ameaças, intimidação e trauma psicológico. Elas viam os homens que as agrediram andando livremente.
Ao se recusar a desistir do caso, entretanto, as mulheres o levaram a um nível internacional, fazendo dele um símbolo das falhas do Estado de direito no México e da impunidade generalizada que garante que elas não sejam sanadas.
Embora seja improvável que o governo de Peña Nieto realize uma investigação sobre se ele sabia ou encobriu os ataques, a advertência de um órgão internacional é um profundo incômodo.
Depois de apresentado ao tribunal, apesar de várias tentativas do governo mexicano de adiá-lo ou interrompê-lo, o caso oferece uma rara oportunidade de prestação de contas em um país onde só uma pequena porcentagem dos crimes é solucionada. As mulheres se recusaram a fazer acordo no caso durante anos, com a assistência legal da organização de direitos humanos Centro Prodh, recusando promessas de casas e bolsas de estudos. Em entrevistas com as 11 vítimas, surge um desejo fundamental: o reconhecimento público do que aconteceu com elas e quem o ordenou.
O trauma residual dos ataques marcou cada mulher de modo diferente. Para algumas, a família e os amigos ofereceram uma maneira de se recuperar, embora não totalmente, e seguir com suas vidas. Algumas encontraram maneiras de conectar sua luta ao movimento maior por justiça e direitos humanos no México. Mas outras não encontraram esse conforto.
"Eu não podia contar a meu filho e a meu pai sobre o fato de que fui estuprada por vários policiais, porque eles teriam enlouquecido", disse Romero. "Eu não queria lhes causar ainda mais dor. Já tínhamos sofrido o bastante."
Os ataques, o processo, a prisão e o estigma oriundos da violência sexual passariam a definir os dez anos seguintes das mulheres de Atenco. Em entrevistas, elas descreveram suas vidas como divididas em dois: quem elas eram antes do episódio e o que se tornaram depois.
As que estudavam na época deixaram o colégio e nunca voltaram. Todas lutavam com a intimidade. Mães viram seus filhos as abandonarem, frustrados e temerosos da interminável campanha por justiça. Pais deram as costas às filhas, embaraçados pelo abuso e a luta pública que se seguiu. Parceiros também se afastaram, incapazes de se adaptar ao trauma de uma sobrevivente de agressão sexual.
"Eu tomei a decisão consciente de sobreviver, de estar viva e bem hoje, de me sentir bonita de novo, de me amar e me olhar no espelho e reconhecer a pessoa que eu via", disse Patricia Torres Linares, 33, que abandonou os estudos de ciência política depois do ataque. "Foi isso o que eles roubaram de mim, meu modo de ser, de amar, de sentir. Antes eu era carinhosa e gentil, depois me tornei fria e distante."
Para algumas, um sentimento de vergonha, e até de responsabilidade, pelo que aconteceu toldava seus relacionamentos com outros e seu próprio senso de identidade. A sobrevivência se tornou sua medida de sucesso, uma progressão palpável a marcar os dias.
"É duro saber que a Claudia de antes de Atenco não existe mais", disse Claudia Hernández Martínez, 33, que depois do ataque abandonou os estudos na prestigiosa Universidade Autônoma do México. "Hoje eu tenho medo o tempo todo. Medo de tudo, de sair na rua, de expressar minhas ideias, para que as pessoas saibam o que aconteceu em Atenco."
"No final desses dez anos, eu me pergunto: o que eu fiz esse tempo todo?", continuou ela. Depois fez uma pausa e olhou para o chão.
"Bem, acho que eu apenas sobrevivi", disse, enxugando uma lágrima. "E acho que é compreensível. Era compreensível que eu chorasse, que eu pensasse em me matar, que eu chorasse tanto e que agora eu esteja aqui."
Enquanto o governo afirma que foi atrás dos responsáveis, após anos de estagnação a comissão considerou seus esforços tardios e inadequados. Trinta e quatro oficiais de baixa patente foram julgados em agosto, em um processo legal lento e imprevisível que não tranquilizou as vítimas.
Em abril passado, quase exatamente dez anos após os acontecimentos em Atenco, Peña Nieto visitou a cidade. O evento teve ampla cobertura na mídia local, incluindo o discurso que o presidente fez diante de uma multidão de mulheres e crianças.
Nem o presidente nem as reportagens locais mencionaram os protestos, as mortes ou os estupros.
A visita e a cobertura se concentraram no Dia das Crianças e na nova iniciativa do presidente para estender a pré-escola a todas as crianças do país.
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