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Quase em ruínas, igreja foi centro de filosofia moderna no Rio

Imagem de Clotilde de Vaux, por quem Auguste Comte era apaixonado, na Igreja Positivista do Brasil - Nadia Shira Cohen/The New York Times
Imagem de Clotilde de Vaux, por quem Auguste Comte era apaixonado, na Igreja Positivista do Brasil Imagem: Nadia Shira Cohen/The New York Times

Simon Romero

No Rio de Janeiro

03/01/2017 06h00

Os moradores de prédios de apartamentos vizinhos atiram garrafas de cerveja vazias por um buraco no telhado da igreja que um dia foi majestosa. Pombos ocupam a nave escura, seus excrementos amontoando-se no chão. Um vigia protege tesouros contra os ladrões que invadem prédios abandonados na cidade.

A construção neoclássica da Igreja Positivista do Brasil, com suas colunas enormes e uma inscrição críptica sobre a entrada que proclama "Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos", foi por muito tempo uma visão cativante na Rua Benjamin Constant, perto do centro antigo da cidade.

Hoje deteriorado e pintado com grafites, o templo fundado por livre-pensadores que ajudaram o Brasil a se erguer das cinzas do império é apenas mais um emblema de como o Rio de Janeiro negligencia seu passado, permitindo que a grandeza caia em ruínas.

"Os congregados antigamente se reuniam aqui para discutir as ideias incendiárias vindas de Paris, a cidade sagrada dos positivistas", disse Christiane Souza, 48, diretora de patrimônio da igreja. "Tragicamente, nossa instituição hoje se encontra em estado de abandono, como se a história fosse algo que o Brasil deve desdenhar."

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Busto de Auguste Comte (esq.), fundador do positivismo, entre outros bustos no porão da igreja
Imagem: Nadia Shira Cohen/The New York Times

De fato, poucos brasileiros sabem algo sobre o positivismo, a religião secular que foi disseminada no Brasil na segunda metade do século 19 por seguidores do filósofo francês Augusto Comte. Exceto, talvez, por dois de seus preceitos --ordem e progresso--, que continuam estampados na bandeira brasileira.

Em uma definição aproximada, o positivismo, a filosofia de Comte, buscava reorganizar a sociedade em torno do conceito de que as explicações derivadas da ciência deveriam ser valorizadas como uma maneira de compreender o mundo. O positivismo atraiu admiradores em lugares como o México, o Reino Unido e a Turquia. Levando as coisas um passo além, Comte criou uma religião própria para difundir suas crenças.

Algumas facetas de sua Religião da Humanidade lembravam o catolicismo. O interior da igreja decadente no Rio ainda passa a sensação de uma catedral austera, cujos serviços se interromperam depois que parte do telhado desmoronou durante uma tempestade em 2009. Os fiéis exaltavam um ícone feminino semelhante à Virgem Maria, cujo modelo foi Clotilde de Vaux, por quem Comte se apaixonou.

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Christiane Souza, diretora de patrimônio da igreja
Imagem: Nadia Shira Cohen/The New York Times

Mas Comte também disse aos seguidores para adorarem a humanidade, e não Deus, e criou um novo calendário. Seu ano inicial era 1789, quando uma turba invadiu a Bastilha em um momento definitivo da Revolução Francesa; ele batizou os meses segundo personagens históricos como Gutenberg, Carlos Magno, Shakespeare e Dante.

O Brasil, um império escravagista governado por uma monarquia na maior parte do século 19, era um terreno fértil para a Religião da Humanidade. Os seguidores francófilos dessa fé incluíam importantes figuras do período tumultuado após o golpe de 1889 que derrubou o imperador do Brasil, tais como Cândido Rondon, o explorador que mapeou os recônditos da floresta amazônica com Theodore Roosevelt.

Em outros países, o lugar onde tais luminares se reuniam poderia ser hoje venerado como um museu. Não no Rio, cujas autoridades no ano passado abriram um luxuoso Museu do Amanhã para contemplar o futuro, enquanto edifícios da Belle Époque na cidade se encontram em diferentes estágios de deterioração.

Giovanni Fernandes, o custódio da Igreja Positivista, às vezes permite que um ou dois visitantes entrem no edifício, oferecendo-lhes uma visão de um passado não tão distante. Espalhados ao redor da entrada estão panfletos de um século atrás, em português e francês, que os positivistas costumavam imprimir no porão.

Os títulos dos folhetos envelhecidos refletem as polêmicas, as disputas políticas e os preconceitos que costumavam consumir o Brasil: "Vacinação obrigatória e a política da República", "A questão da fronteira entre Brasil e Argentina", "Em defesa dos selvagens brasileiros".

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Panfletos escritos por positivistas em francês e português, na Igreja Positivista do Brasil
Imagem: Nadia Shira Cohen/The New York Times

Uma sala com uma escada em espiral contém uma série de esculturas empoeiradas, como uma estátua de Clotilde de Vaux embalando um bebê. Pinturas degradadas na parede parecem representar aristocratas em trajes europeus, perdidos em reflexão filosófica.

De vez em quando, estudiosos saem da igreja com descobertas cobiçadas, como quando uma gaveta embolorada, cheia de velhos papéis, revelou os esboços originais da bandeira brasileira, que os positivistas criaram passando por cima das objeções de adversários que queriam uma inspirada na dos EUA.

"Há tanto pó e sujeira aqui que às vezes eu digo para os visitantes trazerem máscaras cirúrgicas", disse Fernandes, 57, o guardião solitário da igreja. "Muitas vezes me perguntam se o prédio é assombrado, e eu respondo: 'Não, eu não trabalharia ao lado de fantasmas'."

Os historiadores dizem que a construção lúgubre e vazia, que foi influenciada pelo Panthéon de Paris, contrasta com o papel que a Igreja Positivista teve como ponto de encontro de intelectuais que tentaram carregar o Brasil para a era moderna.

Os positivistas assumiram posições progressistas sobre diversos temas, travando cruzadas contra a corrupção do governo e a favor de leis para melhorar as condições de trabalho dos brasileiros pobres. Em choque com a oligarquia entrincheirada, os positivistas fizeram campanha pela abolição da escravatura em 1888.

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Túmulos de positivistas no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro
Imagem: Nadia Shira Cohen/The New York Times

O historiador brasileiro José Murilo de Carvalho, 77, disse que os positivistas desprezavam tanto a escravidão que proibiram que os congregados possuíssem escravos e promoveram a glorificação de Toussaint L’Ouverture, líder da revolução dos escravos no Haiti.

"Imagine como isso se passou em um país escravagista, que repelia qualquer sombra de rebelião", disse Carvalho. "Os positivistas eram extremamente avançados para a época."

Se a Religião da Humanidade de Comte teve maior influência no Brasil do que em muitos outros países, entretanto, a fé nunca pegou realmente entre os brasileiros, com exceção de um grupo central de algumas centenas de membros no Rio de Janeiro e nas cidades de Porto Alegre e Curitiba.

Alguns estudiosos dizem que os potenciais convertidos recuavam diante de questões como a proibição de casar-se após enviuvar e o tratamento dado às mulheres, que deveriam ganhar salário por criar os filhos, mas eram proibidas de trabalhar fora de casa.

Depois havia a sensação de estranheza diante de algumas posições de Comte, como sua crença em que o cérebro é um órgão através do qual os mortos podem influenciar os vivos --daí a placa enigmática que um dia adornou o portão do templo.

Até uma década atrás, aproximadamente, um grupo de cerca de dez congregados ainda se reunia na igreja para realizar serviços, antes que o teto desabasse. Hoje os descendentes dos devotos doam seu próprio tempo e magros fundos para impedir que o prédio desmorone totalmente.

"Temos milhares de livros raros aqui, sem falar nas estátuas, pinturas, bandeiras, lápides e quem sabe o que mais", disse Souza, a diretora de patrimônio, cujo pai, Danton Voltaire Pereira de Souza, liderou a igreja até sua morte, em 2014.

"Entristece-me pensar que talvez sejamos os últimos positivistas", disse ela, encostada aos andaimes que faziam parte de uma tentativa de restauração. "Às vezes parece que estamos lutando contra o esquecimento."