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Grávida morta pela polícia sofria de distúrbios mentais após relacionamentos abusivos

Flores e fotos são colocadas em memorial em homenagem a Charleena Lyles no prédio onde ela foi morta pela polícia, em Seattle (EUA) -  David Ryder/Getty Images/AFP
Flores e fotos são colocadas em memorial em homenagem a Charleena Lyles no prédio onde ela foi morta pela polícia, em Seattle (EUA) Imagem: David Ryder/Getty Images/AFP

Matthew Haag

21/06/2017 04h01

Agentes do Departamento de Polícia de Seattle conheciam bem o apartamento 4303 do complexo residencial Brettler Family Place, na região nordeste da cidade. Depois de terem respondido a pelo menos três chamados por violência doméstica no último ano, a polícia foi enviada novamente ao local na manhã de domingo (18) para investigar um roubo na unidade de Charleena Lyles.

Lyles os recebeu na porta, deixou que eles entrassem e depois lhes explicou calmamente que um console de vídeo game Xbox havia sido roubado e uma sacola de roupas sobre sua cama parecia ter sido remexida, de acordo com uma gravação de áudio dos policiais.

Mas, depois que um policial repetiu em voz alta o que havia sido roubado, a situação de repente escalou depois que dois policiais presentes disseram ter visto Lyles, 30, empunhando uma faca, segundo a polícia.

“Para trás, para trás, para trás!”, gritou um policial.

“Preparem-se”, respondeu Lyles, usando um palavrão.

“Use o taser nela”, instruiu o outro policial a seu parceiro, mas nenhum dos policiais tinha um taser.

Alguns segundos depois, os policiais atiraram pelo menos cinco vezes, matando Lyles, com três de seus quatro filhos presentes no apartamento. A família disse que ela estava grávida.

O tiroteio fatal revoltou a família de Lyles, que contou que ela havia passado a sofrer distúrbios mentais após anos de relacionamentos abusivos e ameaças de ter a guarda de seus filhos tomada.

Ele também evocou similaridades com casos anteriores de policiais de Seattle usando força letal em confrontos envolvendo pessoas com distúrbios mentais. Esses episódios resultaram em uma investigação do Departamento de Justiça, e o Departamento de Polícia foi colocado sob um termo federal de ajuste de conduta sem admissão de culpa em 2012.

“Não sei se minha irmã estava segurando uma faca ou não, e mesmo que estivesse, ela era muito pequena”, disse sua irmã, em uma entrevista por telefone na segunda-feira à noite. “Não havia motivo para dois policiais treinados atirarem nela.”

Seu pai, Charles Lyles, que vive no subúrbio de Los Angeles em Lancaster, na Califórnia, disse que havia passado a segunda-feira inteira ouvindo repetidas vezes a gravação de áudio de quatro minutos do episódio. Ele disse que não conseguia entender por que os policiais não usaram nada além de um revólver, acrescentando que ela pesava cerca de 40 kg e não tinha histórico de violência.

“Eles estavam falando tranquilamente, e do nada você ouve os tiros”, disse Charles Lyles em uma entrevista. “Fiquei realmente transtornado de ouvi-la morrer”.

O Departamento de Polícia colocou os dois policiais, cujos nomes não foram divulgados, sob licença administrativa paga enquanto o episódio está sendo investigado, um procedimento padrão em tiroteios com morte envolvendo a polícia.

Como requerido pela política da polícia de Seattle, ambos os policiais estavam equipados no domingo com “opções de força menos letais”, segundo a polícia, mas eles não tinham tasers. Não está claro se os dois policiais usaram qualquer outra opção não-letal.

A comandante do Departamento de Polícia, Kathleen O’Toole, disse que o tiroteio foi uma “tragédia terrível”. “A comunidade está arrasada”, disse O’Toole na segunda-feira, de acordo com o “The Seattle Times”. “A família está arrasada. Os policiais estão arrasados”.

Quando Charleena Lyles ligou para a polícia no domingo para comunicar um roubo, a polícia de Seattle disse que enviou intencionalmente dois policiais para seu apartamento por causa de um confronto ocorrido no dia 5 de junho. Nesse dia, Lyles pediu por ajuda depois que um ex-namorado, e pai de seus dois filhos mais velhos, apareceu em seu apartamento sem avisar.

Quando os policiais chegaram por volta das 11h25 no dia 5 de junho, o homem já tinha ido embora, e a polícia encontrou Lyles sentada em um sofá segurando um grande par de tesouras ao lado de sua filha mais nova, de 1 ano de idade. Com as armas em punho, os policiais ordenaram que ela largasse a tesoura, segundo a polícia.

Lyles se recusou. Ainda segurando a tesoura, segundo a polícia, ela saiu do sofá e alertou os policiais, “Nenhum de vocês vai sair daqui hoje!” Ela começou então a falar sobre como a polícia era o demônio e sobre como ela poderia se transformar em um lobo e clonar sua filha, de acordo com a descrição do episódio dada pelos policiais.

Por fim ela se rendeu e foi fichada no Presídio do Condado de King, acusada de assédio. Por não poder pagar a fiança de US$ 7.500 (R$ 25 mil) estipulada para o caso, segundo Williams, ela passou 12 dias na cadeia até que um juiz ordenou que ela fosse liberada na última quarta-feira, sob condição de que ela procurasse tratamento psiquiátrico.

Williams disse que a saúde mental de sua irmã estava perfeita até um ano atrás, quando os serviços de proteção à criança receberam a denúncia de que seus quatro filhos sofriam negligência.

Lyles passou o último ano lutando para provar a um juiz que seus filhos estavam sendo bem cuidados, segundo sua irmã, e que eles só corriam risco por causa de um ex-namorado abusivo que é pai de seus dois filhos mais novos.

Em maio de 2016, o ex-namorado a confrontou em seu apartamento e bateu nela, de acordo com registros da polícia.

Duas semanas depois, quando ela tentava escapar, ele bateu nas janelas enquanto ela tentava sair com o carro, de acordo com a polícia e a família. O vidro que se soltou das janelas quebradas caiu sobre as crianças, o que levou os serviços de proteção à criança a entrarem com uma ação por preocupação com a segurança delas.

Após esses episódios, Lyles recebeu uma ordem de proteção contra o ex-namorado, de acordo com a polícia. Mas o homem voltou ao apartamento dela em agosto e voltou a agredi-la. Ele se declarou culpado de agressão e foi solto em fevereiro, de acordo com registros judiciais.

“Ela perdeu dentes com os socos, ficou com o olho roxo várias vezes. Ela tinha cicatrizes permanentes dos abusos, e implorou tanto por ajuda”, disse Williams sobre sua irmã. “Por fim ela conseguiu ajuda, e aí vocês vêm e tiram sua vida na frente de seus filhos."