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Depoimento: na Coreia do Norte, clima é de preparação para guerra nuclear

Cartaz de propaganda em uma rua de Pyongyang, na Coreia do Norte, mostra um míssil atingindo o Capitólio dos EUA e tem a frase "A resposta da República Popular Democrática da Coreia" - Jonah M. Kessel/The New York Times
Cartaz de propaganda em uma rua de Pyongyang, na Coreia do Norte, mostra um míssil atingindo o Capitólio dos EUA e tem a frase "A resposta da República Popular Democrática da Coreia" Imagem: Jonah M. Kessel/The New York Times

Nicholas Kristof

Em Pyongyang (Coreia do Norte)

06/10/2017 10h44

Voar para a Coreia do Norte em um antigo avião russo é como entrar em um universo alternativo, um no qual o "Líder Supremo" derrota os covardes imperialistas americanos, no qual trigêmeos são tirados de seus pais para serem criados pelo Estado, no qual a guerra nuclear é iminente, mas da qual é possível sobreviver, e na qual não há nenhuma compaixão por detidos americanos, como Otto Warmbier.

Warmbier era um estudante da Universidade da Virgínia que foi preso por roubar um cartaz, então condenado a 15 anos de trabalhos forçados e posteriormente devolvido aos Estados Unidos em um estado vegetativo.

"Ele violou a lei em nosso país", disse Ri Yong Pil, um alto funcionário do Ministério das Relações Exteriores, acrescentando que Warmbier foi devolvido (uma semana antes de sua morte) como um gesto "humanitário". Outro alto funcionário do ministério, Choe Kang Il, insistiu que a Coreia do Norte forneceu excelente atendimento e gastou "todo o dinheiro em cuidados" com ele.

Algo em mim estalou. Eu perguntei como os norte-coreanos podiam se gabar de seus gastos com um homem jovem quando ele estava em coma por causa deles. Choe respondeu de forma igualmente acalorada que Warmbier não sofreu maus-tratos e estava em boas condições quando foi enviado para casa.

"O governo americano, ou algumas pessoas com segundas intenções, o deixaram morrer", disse Choe. "Isso deve visar instigar e disseminar o ódio anticomunista dentro da América."

As autoridades não pediram desculpas e nem recuaram, refletindo uma linha dura em relação aos Estados Unidos que encontrei por toda parte nesta visita. Choe ridicularizou o presidente Donald Trump como "um louco", "um valentão" e "um homem patético com boca grande". Eu faço a cobertura da Coreia do Norte de forma intermitente desde os anos 80, e esta viagem de cinco dias me deixou mais alarmado do que nunca a respeito dos riscos de um confronto catastrófico.

Eu recebi um visto para a Coreia do Norte, assim como outros três jornalistas do "New York Times". O Departamento de Estado americano prontamente nos concedeu uma isenção da proibição de viagem à Coreia do Norte e emitiu passaportes especiais, válidos para uma única viagem para cá.

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Carrossel temático tem forma de foguete em parque infantil dentro de uma fábrica têxtil em Pyongyang
Imagem: Adam B. Ellick/The New York Times

Bem mais do que quando visitei anteriormente, a Coreia do Norte está preparando sua população para que espere uma guerra nuclear com os Estados Unidos. Estudantes colegiais marcham nas ruas em uniformes militares todo dia para condenar os Estados Unidos.

Cartazes e outdoors ao longo das vias públicas mostram mísseis destruindo o Capitólio americano e rasgando a bandeira americana. De fato, imagens de mísseis estão por toda a parte, no playground do jardim de infância, em um show de golfinhos, na televisão pública. Essa mobilização militar é acompanhada pela suposição ubíqua de que a Coreia do Norte pode não apenas sobreviver a um conflito nuclear, como também vencê-lo.

"Se tivermos que ir à guerra, não hesitaremos em destruir totalmente os Estados Unidos", explicou Mun Hyok Myong, um professor de 38 anos que visitava um parque de diversões.

Ryang Song Chol, um operário de fábrica de 41 anos, pareceu surpreso quando perguntei se seu país poderia sobreviver a uma guerra com os Estados Unidos. "Nós certamente venceríamos", ele disse.

Essas entrevistas foram conduzidas na presença de dois funcionários do Ministério das Relações Exteriores, mas mesmo se não estivessem presentes, não há nenhuma chance de que as pessoas comuns falariam livremente a um repórter estrangeiro. Este talvez seja o país mais rigidamente controlado do mundo, de modo que tais citações devem ser vistas como um reflexo do roteiro do governo, neste caso, um perturbadoramente jingoísta.

Em viagens anteriores (minha última foi em 2005), nós jornalistas ficamos hospedados em hotéis na capital e podíamos caminhar livremente por conta própria, mas desta vez, o Ministério das Relações Exteriores nos hospedou em sua própria casa de hóspedes Kobangsan protegida por guardas, no leste da capital. Meu pensamento inicial era de que isso visava simplesmente nos restringir, mas cada vez mais vi sinais de algo mais interessante e ameaçador: o ministério também estava nos protegendo dos linhas-duras nas forças armadas ou nos serviços de segurança.

"Alguém pode ouvir que vocês são da América" e poderia haver problemas, explicou um funcionário.

Os linhas-duras parecem ter ganhado maior poder neste ano, especialmente após a ameaça de Trump de "destruir totalmente" a Coreia do Norte, e nos disseram que oficiais militares às vezes zombam dos diplomatas de seu próprio país por serem uns bananas "comparsas dos americanos".

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Os funcionários do ministério nos escoltavam toda vez que deixávamos a instalação, provavelmente tanto para nos impedir de causar problemas quanto para nos proteger das agências de segurança.

Sim, tudo isso foi um pouco desconcertante.

O resultado é que senti mais restrição do que em visitas anteriores à Coreia do Norte e consideravelmente mais tensão. Antes, pude ver importantes generais, mas desta vez, os militares se recusaram a considerar meus pedidos de entrevista. As forças de segurança também recusaram meu pedido para visitar os três americanos que permanecem detidos, um deles já há dois anos, sem acesso consular.

Um problema básico é que linhas-duras parecem em ascensão tanto em Washington quanto em Pyongyang.

Em Washington, o secretário de Estado, Rex Tillerson, está defendendo uma solução diplomática para o conflito com a Coreia do Norte, mas Trump o minou pelo Twitter no último domingo, dizendo que Tillerson estava "perdendo seu tempo". A política de Trump para a Coreia do Norte é apoiada nas falsas suposições de que o Líder Supremo, Kim Jong-un, abrirá mão de suas armas nucleares, que a China pode salvar o dia e que as opções militares são reais.

Em Pyongyang, a capital da Coreia do Norte, que é cheia de ruas largas e prédios monumentais, as autoridades também expressam pouco interesse no tipo de concessões duras que seriam necessárias para uma solução da crise.

A situação na Península Coreana está à beira do estouro de uma guerra nuclear"

me disse Choe, o funcionário do Ministério das Relações Exteriores. "Podemos sobreviver" a essa guerra, ele acrescentou, e ele e outros funcionários disseram que não é o momento certo para negociações com os Estados Unidos.

Os norte-coreanos insistem que os Estados Unidos devem dar o primeiro passo e suspender suas sanções e "postura hostil", algo que não acontecerá. E os Estados Unidos estão igualmente iludidos ao insistirem para que a Coreia do Norte desista de todo seu programa nuclear.

Eu disse a Choe que minha visita me deu uma sensação de déjà vu, me lembrando de uma viagem ao Iraque de Saddam Hussein pouco antes da invasão americana. A diferença é que uma guerra aqui não seria apenas um desastre regional, mas um cataclismo nuclear.

Choe não ficou impressionado com meu alerta. Ele disse que o Iraque e a Líbia cometeram o erro de abrir mão de seus programas nucleares. Em ambos os casos, os Estados Unidos derrubaram o regime. Ele acrescentou que a lição foi óbvia, de modo que a Coreia do Norte nunca negociará suas ogivas nucleares.

Ainda assim, apesar de toda a sombra de uma possível guerra, a Coreia do Norte passou por algumas mudanças positivas. A fome acabou (apesar da subnutrição ainda afetar o desenvolvimento de 1 entre 4 crianças), a economia se desenvolveu e os funcionários do governo são bem mais abertos e entendidos do que os de uma geração atrás.

As autoridades costumavam negar que havia algum crime na Coreia do Norte, mas agora reconhecem livremente que este país tem ladrões, que as mulheres jovens às vezes engravidam antes do casamento, que inevitavelmente existe alguma corrupção. (Mas negam que a Coreia do Norte tenha algum gay.)

A Coreia do Norte não está mais selada hermeticamente e música pop e novelas sul-coreanas são contrabandeadas em pendrives e DVDs da China (assisti-las é um crime sério). Também há uma intranet, uma versão doméstica rigidamente controlada da internet, e os alunos aprendem inglês a partir da terceira série. Nas melhores escolas, como a Escola de Ensino Médio Nº 1 de Pyongyang, os alunos são extraordinariamente inteligentes e conversaram conosco em inglês fluente, com muito mais sofisticação do que na minha primeira visita à mesma escola em 1989.

Mas esta ainda é a Coreia do Norte. Eu perguntei aos jovens se já tinham ouvido Beyoncé ou os Beatles; nenhum tinha. Perguntei se tinham ouvido falar do Facebook. Um tinha, porque o software do computador às vezes se refere a ele, mas não sabia o que era.

Rádios ou televisores capazes de receber transmissões estrangeiras são ilegais, e não há acesso à internet, exceto para estrangeiros e altos funcionários. Quando cheguei ao aeroporto, minha bagagem foi meticulosamente revistada à procura de publicações perniciosas, até meu telefone foi examinado.

"Quem é esta pessoa", perguntou com suspeita a funcionária da alfândega, quando viu uma mulher asiática aparecer com frequência nas minhas fotos.

"Minha esposa", eu expliquei.

"Oh", ela disse, mudando de tom. "Ela é bonita."

Toda casa ou vilarejo tem um alto-falante, um elo com o Grande Irmão, que martela propaganda toda manhã. Religião e sociedade civil não são permitidas. Os controles do governo se desfiaram durante a fome terrível dos anos 90, quando talvez 10% da população morreu, mas os controles retornaram com a recuperação econômica. Este é o Estado mais totalitário da história do mundo, porque tem computadores, câmeras de circuito fechado, celulares e outras tecnologias de monitoramento com as quais Stalin ou Mao só podiam sonhar.

A Coreia do Norte às vezes também é simplesmente estranha. Trigêmeos são tirados de seus pais e criados pelo Estado porque são considerados auspiciosos. O culto à personalidade é inflexível, com todo adulto usando alfinetes de lapela do "Grande Líder", Kim Il-sung, que morreu em 1994, ou de seu filho, o "Querido Líder", Kim Jong-il, que morreu em 2011, e seus retratos estão em todas as casas, todas as fábricas, todas as salas de aula.

Todo ano, pessoas morrem tentando salvar os retratos dos Kim de casas em chamas (seja por lealdade genuína ou para ganharem crédito junto às autoridades), e agora essa reverência ao estilo confuciano é direcionada a Kim Jong-un, 33 anos, o herdeiro da dinastia. Seu nome significa "justo e misericordioso", e a mídia estatal adora sua "inteligência brilhante, astúcia militar, coragem incomparável e notável arte de comandar", como colocou uma publicação.

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De alguma forma, apesar de toda a hostilidade oficial, os norte-coreanos tendem a ser amistosos com indivíduos americanos. Na nova torre de ciência e tecnologia em Pyongyang, eu conheci um garoto de 13 anos, Paek Sin Hyok, que participa diariamente das paradas militares em sua escola de ensino médio em mobilização para a guerra. Era a primeira vez que ele se encontrava com americanos e disse que seu coração estava disparado. Eu perguntei sobre uma expressão comum norte-coreana, "assim como um lobo não pode se tornar um cordeiro, um imperialista americano nunca mudará sua natureza agressiva".

"E quanto a nós?", eu lhe perguntei. "Somos lobos? Ou cordeiros?"

Ele ficou pensando em como responder a isso educadamente. "Meio a meio", ele disse.

Com essa desconfiança mútua, é fácil ver como as coisas podem dar errado. Eu suspeito que a Coreia do Norte é racional e se importa com sua autopreservação, e não acredito que dispararia um míssil nuclear contra Guam ou Los Angeles apenas pela emoção de fazê-lo. Mas um combate entre um avião norte-coreano e um caça americano poderia provocar uma escalada da crise. Ou Trump poderia ordenar um ataque aéreo contra um míssil norte-coreano durante o abastecimento na plataforma de lançamento, e isso, disseram todas as autoridades norte-coreanas, levaria a uma guerra.

Ambos os lados estão com o dedo coçando no gatilho. É por isso que, nos jogos de guerra, os conflitos passam por uma rápida escalada, e porque as forças armadas americanas estimaram em 1994 que outra guerra na Coreia causaria 1 milhão de baixas e US$ 1 trilhão em danos. Hoje, com a possibilidade de troca de fogo nuclear, os números poderiam ser muito maiores: um estudo recente sugeriu que se a Coreia do Norte detonasse armas nucleares sobre Tóquio ou Seul, as mortes apenas nas duas cidades poderiam ultrapassar 2 milhões.

Minha sensação é que ambos os lados temem parecer fracos e estão tentando intimidar o outro com bravata militar, mas que ambos preferem uma solução pacífica, mas não sabem como chegar a ela politicamente. Então, como podemos sair dessa encrenca?

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Prédios residenciais em Pyongyang
Imagem: Adam B. Ellick/The New York Times

Primeiro, Trump precisa parar de personalizar e provocar uma escalada no conflito. Segundo, precisamos de negociações sem condições, com a intenção de que simplesmente comecem: eu sugeriria uma visita secreta a Pyongyang por um alto funcionário do governo, assim como discussões com o embaixador da Coreia do Norte na ONU. Terceiro, direitos humanos devem fazer parte da agenda, apoiada pela ameaça de suspensão das credenciais da Coreia do Norte na ONU. Quarto, devemos apoiar organizações que contrabandeiam informação para a Coreia do Norte em pendrives; isso seria barato e contribuiria para uma mudança a longo prazo. Quinto, aumentar a ciberguerra, que os Estados Unidos já usaram de forma eficaz contra a Coreia do Norte. Sexto, vamos aplicar sanções mais duras, mas apenas se direcionadas para produzirem um resultado plausível.

No final, a melhor esperança realista pode ser uma variação do que é chamado de "congelamento por um congelamento", com a Coreia do Norte suspendendo seus testes nucleares e de mísseis em troca de uma redução das sanções e dos exercícios militares americanos e sul-coreanos, como um passo interino, preservando a meta de longo prazo de desnuclearização. Infelizmente, ambos os lados resistem a essa abordagem. Eu fiquei desapontado com a falta de interesse norte-coreana.

Assim, se não for possível chegar a um congelamento por um congelamento, a próxima melhor opção realista é chegar a uma dissuasão mútua de longo prazo. Mas isso seria arriscado, não apenas por termos um presidente americano e um líder norte-coreano que parecem impetuosos, excessivamente confiantes e com temperamento inclinado a escalar qualquer disputa, como também pelo território continental americano estar cada vez mais na mira das ogivas nucleares norte-coreanas.

Eu parto da Coreia do Norte com a mesma sensação de agouro que senti ao partir do Iraque de Saddam em 2002. A guerra é evitável, mas não estou certo de que será evitada.