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Rohingyas relatam atrocidades em Mianmar: "Jogaram meu bebê em uma fogueira"

Refugiados rohingya chegam a Shah Porir Dip, Bangladesh, após cruzar o rio Naf - Sergey Ponomarev/The New York Times
Refugiados rohingya chegam a Shah Porir Dip, Bangladesh, após cruzar o rio Naf Imagem: Sergey Ponomarev/The New York Times

Jeffrey Gettleman

Em Cox?s Bazar (Bangladesh)

12/10/2017 13h14

Centenas de mulheres paradas no meio do rio, sob a mira de armas, receberam a ordem de não se mexer. 

Um bando de soldados avançou na direção de uma jovem magrinha de olhos castanho-claros e delicadas maçãs do rosto. Seu nome era Rajuma e, com água até o peito, ela segurava firme seu bebê enquanto seu vilarejo em Mianmar era incendiado. 

“Você!”, disseram os soldados, apontando para ela. Ela travou. “Você!” Ela abraçou seu bebê ainda mais forte. 

Em uma confusa e violenta sequência, os soldados bateram no rosto de Rajuma, arrancaram de seus braços o filho que chorava e o jogaram em uma fogueira. Depois ela foi arrastada para dentro de uma casa e sofreu um estupro coletivo. 

1.out.2017 - Rajuma, refugiada rohingya, no campo de Kutupalong, em Bangladesh, após fugir de Mianmar - Sergey Ponomarev/The New York Times - Sergey Ponomarev/The New York Times
Rajuma, refugiada rohingya, teve seu bebê assassinado
Imagem: Sergey Ponomarev/The New York Times

Esse dia ela terminou correndo por um campo nua e coberta de sangue. Sozinha, ela conta que perdeu seu filho, sua mãe, suas duas irmãs e seu irmão mais novo, todos assassinados diante de seus olhos. 

Rajuma é uma muçulmana rohingya, um dos grupos étnicos mais perseguidos do planeta, e agora ela passa os dias perambulando por um campo de refugiados de Bangladesh, em estado de torpor.  

Ela me contou sua história durante uma viagem que fiz recentemente para uma reportagem aos acampamentos, para onde centenas de milhares de rohingyas como ela correram em busca de refúgio. Seu relato profundamente perturbador sobre o que aconteceu em seu vilarejo, no final de agosto, foi corroborado por dezenas de outros sobreviventes, com quem conversei demoradamente, e por grupos de direitos humanos que estão coletando provas das atrocidades. 

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Sobreviventes disseram ter visto soldados do governo esfaqueando bebês, decapitando meninos, estuprando meninas coletivamente, disparando granadas de 40 mm para dentro das casas, queimando famílias inteiras até a morte, e juntando dezenas de homens moradores do vilarejo desarmados para executá-los de forma sumária. 

Boa parte da violência era ostensivamente brutal, íntima e pessoal—do tipo que é detonada por um antigo e amargo histórico de ódio étnico. 

“As pessoas seguravam os pés dos soldados, implorando por suas vidas”, disse Rajuma. “Mas eles não paravam, só chutavam e matavam, trucidaram pessoas, atiraram em pessoas, nos estupraram e nos deixaram inconscientes.” 

Bangladesh recebe mais de 400 mil refugiados de Mianmar

UOL Notícias

Investigadores de direitos humanos dizem que os soldados de Mianmar mataram mais de mil civis no Estado de Rakhine, e possivelmente até 5 mil, embora seja difícil saber com certeza porque Mianmar não tem permitido que nem a ONU nem ninguém entre nas áreas afetadas. 

Peter Bouckaert, investigador veterano da Human Rights Watch, disse que havia cada vez mais indícios de massacres organizados, como o massacre ao qual Rajuma sobreviveu, no qual soldados do governo assassinam metodicamente mais de 100 civis em um único lugar. Ele os chama de crimes contra a humanidade. 

Na quarta-feira (11), o setor de direitos humanos da ONU disse que tropas do governo haviam atacado “casas, plantações, estoques de alimentos, gado e até mesmo árvores”, tornando “quase impossível” para os rohingyas voltarem para casa. 

O Exército de Mianmar alegou que estava reagindo a um ataque cometido por militantes rohingya no dia 25 de agosto e atacando somente insurgentes. Mas, de acordo com dezenas de testemunhas, quase todas as pessoas mortas eram moradores desarmados, e muitos estavam com as mãos atadas. 

Imagens de satélite revelaram 288 vilarejos diferentes incendiados, alguns completamente. 

Grupos de direitos humanos disseram que as tropas do governo tinham um objetivo: apagar comunidades rohingya inteiras. A destruição impiedosa levou mais de meio milhão de pessoas para Bangladesh nas últimas semanas. Representantes da ONU chamaram a campanha contra os rohingyas de um “exemplo clássico” de faxina étnica. 

Praticamente todas as noites aqui no litoral de Bangladesh, ao norte da Baía de Bengal acima de Mianmar, corpos aparecem boiando nas espumosas ondas marrons—crianças, homens, mulheres idosas que tentaram escapar em barcos furados, com os rostos inchados da água do mar. 

Foi por pouco que Rajuma chegou a Bangladesh, depois de conseguir escapar em um barquinho de madeira algumas semanas antes. Ela não sabe ler nem escrever, e não tem um único documento para provar quem ela é ou que nasceu em Mianmar. Isso pode ser um problema se ela se candidatar ao status de refugiado em Bangladesh, que tem relutado em concedê-lo, ou se algum dia tentar voltar para Mianmar. Ela acha que tem por volta de 20 anos, mas poderia passar por 14 de tão magra, com pulsos que parecem fáceis de quebrar. 

Ela cresceu em um povoado com tradição em cultivo de arroz chamado Tula Toli, e conta que o lugar nunca teve paz. 

Os dois principais grupos étnicos de seu vilarejo, os budistas rakhines e os muçulmanos rohingya, eram como dois aviões próximos que nunca se encostavam. Eles seguiam religiões diferentes, falavam línguas diferentes, comiam comidas diferentes e sempre desconfiaram uns dos outros. 

Uma comunidade de budistas vivia a poucos minutos da casa de Rajuma, mas ela nunca falou com nenhum deles. “Eles nos odeiam”, disse. 

Azeem Ibrahim, um acadêmico escocês que escreveu recentemente um livro sobre os rohingyas, explicou que boa parte da animosidade pode ter começado na Segunda Guerra Mundial, quando os rohingyas lutaram do lado britânico e muitos budistas em Rakhine lutaram do lado da ocupação japonesa. Ambos os lados massacraram civis. 

Depois que os Aliados venceram, os rohingyas esperavam conquistar a independência ou se juntar ao Paquistão Oriental (hoje Bangladesh), que também tinha maioria muçulmana e era etnicamente similar aos rohingyas. Mas os britânicos, ansiosos para apaziguar a maioria budista de Mianmar, decretou que as áreas rohingya se tornariam parte da recém-independente Mianmar (na época chamada Birmânia), sujeitando os rohingyas a décadas de discriminações. 

Os líderes de Mianmar logo começaram a tirar seus direitos e culpá-los pelos problemas do país, alegando que os rohingyas eram imigrantes ilegais de Bangladesh que haviam roubado terras boas. 

“Ano após ano eles foram demonizados”, disse Ibrahim. 

1.out.2017 - Refugiados muçulmanos rohingya rezam no campo de Noapara, em Bangladesh, após fugirem de Mianmar - Sergey Ponomarev/The New York Times - Sergey Ponomarev/The New York Times
Refugiados muçulmanos rohingya rezam no campo de Noapara
Imagem: Sergey Ponomarev/The New York Times

Alguns monges budistas influentes disseram que os rohingyas eram a reencarnação de cobras e insetos e deveriam ser exterminados, como pragas. 

A perseguição alimentou um novo movimento rebelde rohingya, que organizou ataques contra delegacias de polícia de Mianmar no dia 25 de agosto. 

Rajuma disse que de seu vilarejo ela conseguia escutar explosões de um desses ataques, ou pelo menos da reação do governo a eles. 

No decorrer dos dias seguintes, Rajuma viu incêndios imensos no horizonte. O Exército estava dando início ao que ele chamou de “operações de desobstrução”. Vilarejos rohingya em toda Tula Toli foram incendiados até o chão, e na noite de 29 de agosto um ancião veio da mesquita para a casa de Rajuma para trazer uma mensagem: os budistas diziam que eles deveriam ir para o rio, para segurança deles. 

A família dela decidiu não sair de lá. “Ninguém confia em um budista”, disse Rajuma.

Na manhã seguinte, Rajuma estava entretida fazendo curry de batata. Enquanto salpicava gengibre e pimentas em uma grande panela, ela sentiu algo e parou. 

Ela foi até a janela e espiou para fora: soldados, dezenas deles, corriam na direção de Tula Toli. 

Rajuma e sua família tentaram correr, mas logo foram capturados e levados até a margem de um rio, onde centenas de outros moradores do vilarejo, apavorados, haviam sido tomados como prisioneiros. 

Os soldados separaram os homens das mulheres. Os moradores imploraram por suas vidas de joelhos, agarrando as botas dos soldados. Os soldados os chutaram e mataram metodicamente todos os homens, disse Rajuma e vários outros sobreviventes de Tula Toli, todos entrevistados separadamente. 

Mulheres e crianças pequenas receberam a ordem de entrar na água e esperar. 

Em termos de táticas usadas, de armas disparadas, do aspecto escancarado dos massacres, dos estupros coletivos e do nível de organização militar, os relatos vindos de várias áreas rohingya diferentes apresentam uma angustiante coesão.  

“Histórias de atrocidades são universais”, disse Anthony Lake, o diretor-executivo do Unicef. 

Ele disse ter ficado profundamente perturbado com o que as crianças rohingya vinham desenhando nos acampamentos—armas, incêndios, facões e pessoas no chão com vermelho escorrendo delas.               

5.out.2017 - Criança rohingya mostra desenho infantil que ilustra violência sofrida em Mianmar - Sergey Ponomarev/The New York Times - Sergey Ponomarev/The New York Times
Criança rohingya mostra desenho infantil que ilustra violência sofrida em Mianmar
Imagem: Sergey Ponomarev/The New York Times

Em um leito de hospital perto de Cox’s Bazar, a maior cidade nessa parte de Bangladesh, encontro Muhamedul Hassan, um lojista rohingya de um vilarejo chamado Monu Para, deitado sobre um lençol branco limpo. Os médicos dizem que é um milagre ele ainda estar vivo. 

No dia 27 de agosto, disse Hassan, cerca de 20 soldados de uma base militar próxima invadiram Monu Para e ordenaram que todos os homens e qualquer menino com mais de 10 anos se apresentassem à casa de um proeminente pecuarista rohingya. 

Os soldados ataram as mãos de todos para trás, e fizeram com que se sentassem no pátio, com a cabeça abaixada. 

Havia cerca de 400 homens e garotos agachados, disse Hassan. Eles suavam, molhando suas camisas. Um sargento do Exército já conhecido dos moradores puxou uma faca longa e fina. 

“As pessoas pediam por ajuda”, disse Hassan. “Os meninos gritavam o nome de suas mães, o nome de seus pais”. 

Hassan disse que diante de seus olhos foram decapitadas ou mortas a tiros dezenas de pessoas. Ele foi baleado três vezes—duas vezes nas costas e uma vez no peito—mas não foi atingido em nenhum órgão vital. 

Depois que os soldados foram embora, conta Hassan, ele foi mancando até sua casa, onde sua irmã enfiou pó de cúrcuma, o melhor que poderia servir como antisséptico, dentro de suas feridas. 

Investigadores de direitos humanos disseram que as atrocidades mais graves que eles documentaram foram cometidas entre 25 de agosto e 1º de setembro, o período logo depois dos ataques dos insurgentes. Muitas testemunhas disseram que as tropas do governo estavam matando gratuitamente qualquer um que conseguissem pegar. 

Em Tula Toli, Rajuma lutou o quanto pôde para ficar com seu bebê, Muhammad Sadeque, de mais ou menos 18 meses de idade. 

Mas um soldado agarrou as mãos dela, outro agarrou seu corpo, e outro ainda a golpeou com um bastão, que deixou uma cicatriz em seu maxilar. 

Tiraram-lhe a criança, com as pernas balançando no ar. “Eles atiraram meu bebê em uma fogueira—simplesmente o jogaram”, ela disse. 

Rajuma disse que dois soldados a arrastaram para dentro de uma casa, arrancaram seu véu e seu vestido e a estupraram. Ela disse que suas duas irmãs foram estupradas e mortas no mesmo quarto, e que no quarto ao lado sua mãe e seu irmão de 10 anos foram mortos a tiros. 

A certa altura Rajuma pensou que tivesse morrido. Ela perdeu a consciência. Quando acordou, os soldados tinham ido embora, mas a casa estava pegando fogo. 

Ela saiu correndo nua, passando pelos corpos de seus familiares e por casas em chamas, e se escondeu na floresta. Anoiteceu, mas ela não dormiu. 

De manhã, ela encontrou uma camiseta velha para usar e continuou correndo. 

Muitas pessoas nos campos de refugiados se mostravam surpreendentemente estoicas, aparentemente tão traumatizadas que não conseguiam nem mais sentir. Em dezenas de entrevistas com sobreviventes que disseram ter visto seus entes queridos sendo mortos, nenhuma lágrima escorreu. 

Mas, quase no final de seu terrível depoimento, Rajuma começou a chorar. 

“Não consigo explicar como dói”, ela disse, vertendo lágrimas pelo rosto, “não poder mais ouvir meu filho me chamar de mãe”.