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Opinião: História mostra que o diálogo, e não a violência, foi sempre o caminho para a paz

Policiais israelenses perseguem um jovem palestino durante uma manfiestação em Jerusalém - URIEL SINAI/NYT
Policiais israelenses perseguem um jovem palestino durante uma manfiestação em Jerusalém Imagem: URIEL SINAI/NYT

Gerry Adams*

04/01/2019 04h00

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, havia 51 Estados-membros na ONU; hoje são 193. Muitos dos países novos surgiram de lutas e conflitos, enquanto impérios antigos ruíram.

Esse ciclo de disputas continua até hoje. A crise do Brexit pode causar prejuízos enormes para a economia da Irlanda e até ameaçar o Acordo de Belfast; na Catalunha e no País Basco, ambos brigando pela independência da Espanha, em Hong Kong e na Palestina, o povo luta ou lutou pelo direito do autogoverno.

O mundo é dominado pelo empenho das nações em criar as próprias leis e decidir que tipo de relação manterá com os outros países; entretanto, para uma pessoa ter controle sobre as decisões que afetam a ela própria, temos de empoderá-la através da diplomacia, da cooperação e do diálogo.

Quando o governo coloca a decência e os direitos do povo em primeiro lugar na negociação dos conflitos mundiais, a democracia se dá como consequência natural.

Acontece que falar é mais fácil que agir, principalmente quando o indivíduo ou as pessoas responsáveis pelo cumprimento da lei quase sempre dão mais importância ao próprio poder do que ao bem comum.

 Produtores agrícolas da Catalunha marcham em apoio ao referendo pela independência em 2017 - SAMUEL ARANDA/NYT - SAMUEL ARANDA/NYT
Produtores agrícolas da Catalunha marcham em apoio ao referendo pela independência em 2017
Imagem: SAMUEL ARANDA/NYT

Quando eu era adolescente, em Belfast, percebi que ninguém ali era tratado de forma justa. O Norte, na verdade, foi criado quando o governo britânico dividiu a Irlanda.

O povo foi separado por linhas sectárias e os católicos, considerados desleais. A nós foram negados os direitos básicos no que, em prática, era um pequeno Estado de apartheid.

A desigualdade que sofremos estava profundamente enraizada na nossa sociedade, ao ponto de se tornar política. Mesmo assim, eu achava que para resolver a situação, bastaria levar o caso à atenção do governo; assim que as autoridades tomassem conhecimento da questão, retificariam o que estava errado.

E logo percebi que as autoridades dependiam justamente dessa desigualdade para garantir seu poder – ou seja, era bem pouco provável que solucionassem o problema se isso lhes custassem as regalias, e qualquer saída seria atenuada para que se mantivesse o mesmo estado de coisas. Aqueles que detêm o poder, ou mesmo a ilusão de comando, não podem pensar em perdê-lo.

Entre os que se encontram do outro lado dessa equação – os desfavorecidos –, há muitos que acreditam não poder mudar a situação. Alguns relutam até em considerar uma possível mudança; outros têm medo de mudar. Há também os que aceitam a sociedade disposta daquela forma, mesmo se são eles os discriminados. E os que estão ocupados demais tentando sobreviver ou vivendo suas vidinhas para sequer pensar que as coisas poderiam ser diferentes.

Não pode haver progresso sem luta política, mas para que essa luta seja bem-sucedida, é preciso que o povo tenha autonomia, força. É preciso ter participação na sociedade e em suas comunidades, ser valorizado, ter sua humanidade respeitada e defendida. Há direitos e garantias que devem que ser mantidos e promovidos. A sociedade precisa se basear no cidadão e se moldar em relação a essas garantias.

A realidade, obviamente, é que a mudança social progressiva raramente é espontânea; precisa ser engendrada, negociada. A violência geralmente surge quando as pessoas se veem, ou pelo menos acreditam estar, sem alternativas – crença que pode se tornar ainda mais enraizada quando o Estado passa a usar de meios extrajudiciais e violentos para defender seus interesses.

Estima-se que os gastos militares anuais globais ultrapassem hoje US$1,7 trilhão, enquanto a ONU e suas agências gastam US$30 bilhões no mesmo período. Os conflitos são fomentados pela pobreza, pela exploração econômica e o desejo de controle dos direitos hídricos, das reservas petrolíferas e de outros recursos naturais.

A Grã-Bretanha já tinha lutado dezenas de guerras de contra insurgência antes de mandar seus soldados para as ruas irlandesas, em 1969. Tinha uma política bem estabelecida que via a lei, de acordo com o brigadeiro Frank Kitson, "como mais uma arma do arsenal governamental… pouco mais que um disfarce doutrinário para o descarte de membros indesejáveis do público".

Os republicanos irlandeses e outros conseguiram superar o conflito e alcançar a paz, criando uma alternativa à luta armada com o Acordo de Belfast. Ele dá certos direitos à Irlanda do Norte, inclusive o de realizar um referendo para saber se a população quer continuar fazendo parte da Grã-Bretanha ou encerrar essa relação e estabelecer uma Irlanda unida.

Mural republicano pintado em Belfast, capital da Irlanda do Norte - PAUL FAITH/POL - PAUL FAITH/POL
Mural republicano pintado em Belfast, capital da Irlanda do Norte
Imagem: PAUL FAITH/POL


O acordo surgiu lentamente, como resultado de trabalho árduo, com os partidos e governos eventualmente se preparando para assumir riscos, e com o apoio da comunidade internacional. Ainda é, em grande parte, um negócio inacabado.

No impasse entre a Espanha e os defensores da independência basca um processo semelhante, em grande parte inspirado pelo da Irlanda, conseguiu acabar com o conflito armado, embora o governo não tenha se engajado integralmente até agora. É comum os líderes do Sinn Fein visitarem outras zonas hostis, incluindo Afeganistão e Colômbia, defendendo a primazia do diálogo, das negociações e do processo de paz.

Tive a oportunidade de viajar para o Oriente Médio em diversas ocasiões, conversar com palestinos, visitar a Faixa de Gaza e a Cisjordânia e falar com líderes israelenses e palestinos. Infelizmente, o fracasso dos governos em respeitar a lei internacional e as resoluções das Nações Unidas, e a recusa do governo israelense em defender normas democráticas e chegar a compromissos justos e imparciais, deixaram muitos palestinos vivendo em condições desesperadoras, sem esperança de um futuro melhor, ou mesmo diferente. O resultado é uma região que existe em permanente estado de conflito.

Mudar isso exige um esforço genuíno de compreender o que motiva, inspira e leva as pessoas a fazerem determinadas escolhas. O diálogo que propicia essa compreensão é o que acaba levando os lados opostos de um conflito a se unirem.

Alguém descreveu a política como a arte do possível, ou seja, reduzindo-a a um comércio medíocre. As expectativas que as pessoas têm em relação ao seu valor precisam que ser aumentadas, nunca diminuídas. Quando fazemos isso, permitimos que a democracia se instaure mesmo nas condições mais críticas.

*Político irlandês presidente do Sinn Fein, partido ligado ao Exército Repúblicano Irlandês (IRA)

Este texto faz parte da série Fator de Mudança, que inclui artigos de opinião, fotos e desenhos sobre eventos e tendências de 2018 que repercutirão não só em 2019, mas nos anos seguintes