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Mentiras contadas por líderes idolatrados nos leva a aceitar "fake news"

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Imagem: Reprodução

Timothy Snyder*

06/01/2019 04h00

Primeiro, vemos o rosto: o rosto do norte-americano Donald Trump, do húngaro Viktor Orban, do russo Vladimir Putin ou do turco Recep Tayyip Erdogan. É o rosto dos homens que querem transformar democracias em cultos à personalidade.

O rosto é a marca mais antiga de liderança, que funciona para clãs ou tribos. Se vemos apenas o rosto, não pensamos em política ou medidas; ao contrário, estamos aceitando o novo regime e suas regras. Acontece que a democracia é feita do coletivo, não de uma única pessoa mitificada.

O povo precisa da verdade, elemento que o culto à personalidade destrói. Teorias de democracia, desde os gregos antigos, passando pelo Iluminismo e até os dias de hoje, assumem sem contestação que o mundo à nossa volta está aberto ao entendimento. Ao lado de nossos compatriotas, buscamos os fatos - mas no culto à personalidade a verdade é substituída pela crença, e nós acreditamos naquilo que o líder quer que acreditemos. O rosto substitui a mente.

A transição da democracia para o culto à personalidade começa com um líder disposto a mentir o tempo todo, com o objetivo de desacreditar a verdade como tal - e se completa quando já não conseguimos distinguir entre verdade e sentimento.

O culto à personalidade funciona da mesma forma em todo lugar; baseia-se no conceito errôneo de que o rosto, de alguma forma, representa a nação. É um fenômeno que nos faz sentir em vez de pensar, achar que a primeira questão da política é: "Quem somos nós e quem são eles?", em vez de "Como é o mundo e o que podemos fazer a seu respeito?". Uma vez que aceitamos a questão do "nós e eles", a sensação é a de que sabemos bem quem "nós" somos, já que temos certeza de quem "eles" são. De fato, não sabemos é nada, uma vez que aceitamos o medo e a ansiedade - emoções animais - como bases políticas. Somos manipulados.

Viktor Orban - Getty Images - Getty Images
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban
Imagem: Getty Images

Os autoritários de hoje contam mentiras médias, que se referem apenas superficialmente a experiências, e nos arrastam para o fundo de uma caverna de emoção. Se acreditamos que Barack Obama é muçulmano, nascido na África (uma mentira norte-americana com apoio russo), ou que Hillary Clinton comanda uma rede de pedofilia (uma mentira russa com apoio norte-americano), na verdade, não estamos pensando; estamos abrindo caminho para o medo sexual e físico.

Essas mentiras médias não são exatamente como os absurdos desmedidos contados pelos totalitários - embora os ataques de Orban contra George Soros como líder de uma conspiração judaica cheguem bem perto. Entretanto, são grandes o bastante para ajudar a desabilitar o mundo factual.

Uma vez que as aceitamos, nós nos abrimos para acreditar em uma série de outras inverdades, ou pelo menos suspeitar que haja outras conspirações mais abrangentes.

O resultado disso é que o rosto do líder se torna uma bandeira, um marcador arbitrário do "nós" e "eles". Graças à internet e às redes sociais, passamos a encarar a política dessa forma binária. Achamos que fazemos escolhas sentados à frente do computador, mas, na verdade, elas são estruturadas para nós por algoritmos, que aprendem o que nos mantêm conectados. Nossa atividade on-line ensina as máquinas que os estímulos mais efetivos são negativos, ou seja, medo e ansiedade. Conforme a rede social se torna instrução política, esperamos que os políticos reproduzam o mesmo esquema binário: o que nos dá medo e o que nos dá segurança? Quem são eles e quem somos nós?

Um culto à personalidade costumava exigir monumentos; hoje, bastam memes. A mídia social rouba a imaginação pública da mesma forma que as estátuas gigantescas dos tiranos de outros tempos consumiam o espaço público. Entretanto, esses monumentos nos lembram que os tiranos sempre morrem. A postura heterossexual vazia, as sessões de foto sem camisa, a misoginia, a indiferença à experiência feminina e as campanhas antigay têm como objetivo ocultar um único fato básico: o de que o culto à personalidade é estéril; não pode se reproduzir. É a idolatria a algo temporário, portanto confusão e, no fundo, covardia: o líder não consegue conceber o fato que um dia morrerá e será substituído, e os cidadãos reforçam essa ilusão esquecendo-se de que também têm responsabilidade em relação ao futuro.

O culto à personalidade mina a habilidade de manter um país em movimento. Quando o aceitamos, não estamos apenas abdicando do nosso direito de escolha dos líderes, mas também embotando as capacidades e enfraquecendo as instituições que nos permitiriam a fazê-lo no futuro. Conforme nos afastamos da democracia, esquecemos seu propósito: o de nos dar a todos um futuro. O culto à personalidade diz que uma pessoa está sempre certa; por isso, após sua morte vem o caos.

A democracia diz que todos cometemos erros, mas que frequentemente temos a chance de nos corrigirmos. A democracia é a maneira corajosa de possuir um país; o culto à personalidade é a maneira covarde de destruí-lo.

*Timothy Snyder é professor de História da Universidade de Yale e membro permanente do Instituto de Ciências Humanas de Viena, mas conhecido pelos livros "Bloodlands" e "On Tyranny". Sua obra mais recente é "The Road to Unfreedom: Russia, Europe, America".

Este ensaio faz parte da série Fator de Mudança: Pauta Global 2019 de fim de ano que inclui artigos de opinião, fotos e desenhos sobre eventos e tendências de 2018 que repercutirão não só em 2019, mas nos anos seguintes.