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Oferta de anistia feita por Guaidó pode levar à impunidade na Venezuela

Rosa Virginia González Arizmendi, de 26 anos, afirma ter sido presa e torturada pelas forças de segurança do governo venezuelano por 11 meses - Meridith Kohut/The New York Times
Rosa Virginia González Arizmendi, de 26 anos, afirma ter sido presa e torturada pelas forças de segurança do governo venezuelano por 11 meses Imagem: Meridith Kohut/The New York Times

Ernesto Londoño e Isayen Herrera

Em Caracas (Venezuela)

08/02/2019 00h01

Os líderes de oposição na Venezuela esperavam que a oferta fosse impossível de recusar: anistia aos oficiais militares em troca de apoio político.

Os militares do país têm sido um baluarte para o presidente Nicolás Maduro enquanto a Venezuela afunda em espiral na crise econômica e humanitária. As Forças Armadas têm muito a perder se a tentativa da oposição de depor Maduro, que já dura semanas, tiver sucesso. Um novo governo poderia responsabilizá-los por denúncias bem documentadas de tortura, mortes extrajudiciais, detenções arbitrárias e corrupção.

Os líderes de oposição consideram crucial a tentativa de instigar os militares a abandonar Maduro para seu plano de assumir o governo até a realização de novas eleições. "Isto não tem a ver com torcer braços, mas sim com estender nossa mão", disse o líder da oposição, Juan Guaidó, durante um comício em 23 de janeiro.

Segundo alguns críticos, porém, facilitar uma transição para a democracia em curto prazo não deve eliminar a possibilidade de julgar em prazo mais longo os que cometeram crimes graves. Ativistas de direitos humanos e venezuelanos que sofreram agressões dizem que a lei de anistia que está no centro da estratégia de Guaidó é imoral e ilegal.

Juristas dizem que ela absolveria de qualquer crime os oficiais que a assinarem, o que iria contra a Constituição da Venezuela e os compromissos do país sob o direito internacional.

"Os dispositivos vagos e abertos da lei poderiam de fato conceder a impunidade geral a oficiais responsáveis por sérios abusos aos direitos humanos", disse em um comunicado o diretor para as Américas da Human Rights Watch, José Miguel Vivanco. "Qualquer anistia que garanta a impunidade absolvendo autoridades do governo e militares responsáveis pelas mais graves violações dos direitos humanos é incompatível com as obrigações internacionais da Venezuela."

As ofertas de anistia estiveram no centro de várias transições de regimes autocráticos para democráticos na América Latina e em outros lugares, servindo para acalmar as tensões políticas enquanto sociedades traumatizadas começam a se reconciliar e reconstruir as instituições democráticas.

Mas também não há precedente histórico para o que a oposição venezuelana está tentando fazer, disse Juan Méndez, especialista em direito internacional na Universidade Americana, que foi relator especial da ONU sobre tortura e outras formas degradantes de punição de 2010 a 2016.

Governos autoritários de saída aprovaram leis ou acordos de anistia antes de entregar o poder no Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. Na Argentina e no Chile, grupos de direitos das vítimas e tribunais conseguiram julgar centenas de pessoas por crimes da época da ditadura, apesar das leis de anistia.

Mas Méndez disse que não se lembra de um caso em que a oferta tenha sido feita pelos que tentavam tomar o controle de um país, o que põe em dúvida sua eficácia. "Os militares sempre tentam sondar de onde o vento está soprando antes de mudar de lado", disse Méndez. "Nesse sentido, essa pode ser uma ferramenta eficaz."

A menos que Guaidó tome o controle das instituições do país, porém, de um ponto de vista jurídico a oferta "não significa nada", acrescentou ele.

Relativamente poucas autoridades graduadas deram sinais de aceitar a oferta, enquanto os aliados de Guaidó promoviam agressivamente a lei de anistia, chegando a entregar pessoalmente cópias em postos militares e policiais.

Em uma entrevista, Guaidó defendeu a proposta de anistia, dizendo que pretendia manter a estabilidade durante um período de transição. Ele e outros legisladores nunca pretenderam deixar que graves violações dos direitos humanos passassem impunes, afirmou.

"O objetivo da anistia é nos permitir governar em curto prazo, estabilizar o país para abordar a emergência humanitária e reconstruir as instituições que podem abrir caminho para uma eleição livre e nos permitir conter a crise econômica", disse Guaidó.

Os legisladores venezuelanos ainda precisam aprovar uma última versão da lei, que poderá ser modificada nos próximos dias antes da votação final. A Assembleia Nacional teve pouco poder para aplicar as leis que aprovou nos últimos anos porque Maduro e os juízes leais a ele tomaram medidas para enfraquecer sua autoridade.

Guaidó ainda precisa apresentar uma visão clara de como um futuro governo buscaria investigar e punir os sérios abusos cometidos pelo governo.

"Não há uma resposta fácil em um país que tem 20 anos de feridas profundas, muito sofrimento", disse Guaidó. "Mas devemos encontrar um meio de sarar, não?"

Elvira Llovera de Pernalete e José Gregorio Pernalete mostram uma foto de seu filho, Juan Pablo Pernalete, que foi morto em 2017 pelas forças de segurança do governo venezuelano durante um período de meses de manifestações contra o governo - Meridith Kohut/The New York Times - Meridith Kohut/The New York Times
Elvira Llovera de Pernalete e José Gregorio Pernalete mostram uma foto de seu filho, Juan Pablo Pernalete, que foi morto em 2017 pelas forças de segurança do governo venezuelano durante um período de meses de manifestações contra o governo
Imagem: Meridith Kohut/The New York Times

Vários presidentes latino-americanos neste ano pediram que o Tribunal Penal Internacional em Haia (Holanda) considere acusar Maduro de crimes contra a humanidade. Mas, enquanto o impasse político entre Maduro e a oposição escalava nos últimos dias, Guaidó e seu mais poderoso apoiador estrangeiro, os EUA, sugeriram que a oferta de anistia poderia se estender a Maduro se ele deixar o poder e o país em breve.

John Bolton, o assessor de segurança nacional dos EUA, pediu em 31 de janeiro que Maduro "aproveite" a oferta de anistia exilando-se assim que possível, desejando-lhe "e a seus principais assessores uma longa e tranquila aposentadoria, vivendo numa bela praia em algum lugar longe da Venezuela".

No dia seguinte, em uma entrevista na rádio, Bolton levantou a possibilidade de que Maduro acabe na prisão militar dos EUA em Guantánamo, em Cuba, se não deixar logo o poder.

Enquanto a deposição de Maduro não é de modo algum um fato certeiro, a proposta de anistia, que cobre não só os militares, mas qualquer pessoa no país que renuncie ao apoio a Maduro, fez os venezuelanos que sofreram sob seu regime debaterem o quanto estariam dispostos a perdoar para ver uma transição.

Em uma tarde recente, um grupo de ex-prisioneiros políticos contava histórias sobre seu tempo atrás das grades enquanto comiam pizza em um restaurante praticamente vazio em Caracas. Gregory Sanabria, 24, mostrou fotos de seu rosto muito machucado enquanto relatava uma sessão de tortura especialmente terrível.

Ignacio Porras, 48, empalideceu ao contar como passou noites de agonia pendurado de um cabo preso a suas mãos algemadas atrás das costas.

Rosa Virginia González Arizmendi, 26, relembrou que um guarda colocava o pênis na frente de seu rosto, exigindo sexo oral, e a espancava quando ela se recusava.

"Esses são crimes contra a humanidade", disse González. "São crimes que não podem ser esquecidos."

Os três disseram que foram escolhidos por sua atividade em partidos de oposição que o governo Maduro acusava, sem provas, de praticar atos de violência e terrorismo. Eles apoiam a ideia de um dispositivo de anistia irrestrita em curto prazo, se ajudar a facilitar a transição para a democracia, mas posteriormente gostariam de ver implantado um sistema de responsabilização.

"Perdoar não é esquecer, mas reconciliar", disse González durante um debate sobre o projeto de lei. "Perdoar o que aconteceu em um nível espiritual, mas garantir e exigir que a justiça seja cumprida."

Os pais de Juan Pablo Pernalete, um jovem de 20 anos que estava entre as dezenas de manifestantes mortos durante o período de protestos contra o governo durante meses em 2017, atenderam aos recentes apelos de Guaidó para que fossem às ruas.

Mas ficaram surpresos quando baixaram a lei de anistia na internet e a leram com cuidado.

"A lei precisa ser mais específica e garantir proteções às vítimas, e não aos agressores", disse seu pai, José Gregorio Pernalete, em uma entrevista em sua casa, onde o quarto do filho continua praticamente intacto.

"Não pode haver impunidade", disse ele. "Não pode haver anistia para crimes contra a humanidade."