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Farmacêuticas têm vitória com projeto de lei polêmico sobre biodiversidade

Amazônia vista da Torre de observação climática Atto, em São Sebastião do Uatumã (AM) - Bruno Kelly/Reuters
Amazônia vista da Torre de observação climática Atto, em São Sebastião do Uatumã (AM) Imagem: Bruno Kelly/Reuters

Mariana Schreiber

Em Brasília

11/02/2015 13h43

A Câmara dos Deputados aprovou na noite da terça-feira (10) uma polêmica legislação sobre biodiversidade que facilita pesquisas a partir de recursos naturais brasileiros – mas que está sendo acusada por comunidades tradicionais de ameaçar seus direitos garantidos internacionalmente.

As mudanças simplificam legislação criada no início da década passada, quando o governo brasileiros sofria grande pressão - inclusive internacional - para combater a chamada biopirataria.

O projeto de lei (PL) enviado em regime de urgência pelo governo ao Congresso no ano passado, em meio à Copa do Mundo, regula o acesso ao patrimônio genético de animais, vegetais e microorganismos típicos do Brasil, assim como o uso de conhecimentos de comunidades tradicionais para gerar produtos a partir desses elementos - por exemplo, desenvolver medicamentos a partir de ervas.

Visto como prioritário para o governo, o PL 7735/2014 segue agora também em regime de urgência para o Senado - o que significa que se não for apreciado em 45 dias passa a trancar a pauta de votação.

As mudanças agradam farmacêuticas interessadas em desenvolver produtos a partir da biodiversidade brasileira - uma das mais ricas do mundo -, que entendem que a atual legislação dificulta a pesquisa científica e o desenvolvimento de novos produtos e patentes.

Porém, grupos tradicionais dizem ter sido excluídos do debate e criticam as novas regras.

"O governo fez uma discussão de profundidade com as empresas e não ouviu os provedores (de conhecimento tradicional). A proposta ignorou o outro lado", criticou Joaquim Belo, presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, organização que representa grupos como seringueiros e extratores de óleo e plantas medicinais.

Mais dinheiro, menos direitos

Nem governo nem setor privado têm estimativas de quanto o mercado da biodiversidade pode movimentar com a aprovação das novas regras, mas ambos têm certeza de que há enorme potencial de crescimento.

Dados da indústria farmacêutica, por exemplo, mostram que os chamados fitomedicamentos (aqueles que usam recursos da biodiversidade) não são nem 2% do mercado varejista. O setor faturou R$ 58 bilhões com vendas no varejo em 2013, sendo que R$ 964 milhões vieram dos fitomedicamentos.

O secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, Roberto Cavalcanti, disse que as mudanças beneficiarão as comunidades ao gerar mais pesquisas e, consequentemente, mais divisão de recursos. Dinheiro que pode ser revertido para preservação ambiental e de seus conhecimentos.

"Realmente há pouca geração de recursos hoje para as comunidades por causa da burocracia, mas a legislação representa um retrocesso na proteção dos direitos das comunidades. Somos a favor de mudanças na atual legislação, mas não desse projeto", disse Maurício Guetta, advogado do Instituto Socioambiental (ISA), ONG que tem atuado na defesa dos interesses desses grupos.

A dificuldade embutida nas regras brasileiras para o setor é produto da chamada biopirataria, cujo conceito se espalhou nos anos 90 em meio a notícias de patentes que estavam sendo registradas no exterior - Japão, Canadá, Estados Unidos e Europa - a partir de plantas e organismos brasileiros.

Entre os casos mais conhecidos estão produtos feitos a partir do cupuaçu, açaí e do sapo-verde, cuja secreção é usada por várias tribos amazônicas para fins medicinais e ritualísticos.

'Criminalização da pesquisa'

A ideia da legislação era proteger recursos da nossa biodiversidade e os conhecimentos de comunidades tradicionais. As regras estabeleceram um rito rigoroso para empresas, laboratórios e instituições científicas solicitarem autorização para essas pesquisas.

Na visão do setor privado e do governo Dilma Rousseff, a lei é muito burocrática e atravanca o desenvolvimento científico do país.

Em junho de 2014, quando o projeto de lei foi enviado ao Congresso, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, disse que a legislação em vigor é "extremamente confusa" e que "há várias instituições científicas no Brasil criminalizadas, respondendo por crime ambiental".

Na ocasião, ela afirmou também que "13 mil patentes estão paradas no momento devido a autuações por terem tido acesso a recursos genéticos".

Desde 2005, quando entrou em vigor um decreto regulando as sanções no caso de desrespeito dessas regras, o Ibama já aplicou um total de R$ 231 milhões em multas, resultado de 581 autos de infrações contra instituições brasileiras e multinacionais.

Entre elas estão grandes empresas (Avon, Natura, Ambev, Boticário, Johnson & Johnson, L'Oréal, Unilever, etc), laboratórios e farmacêuticas (Pfizer, Abbott, Medley, Merck, etc); e até mesmo a Embrapa (estatal que faz pesquisas para o setor agropecuário) e universidades públicas (USP, UERJ, UFMG, UFRGS, UFPB, etc), que costumam recorrer das multas.

Alguns casos vão parar na Justiça, como a notória disputa entre a Natura e os índios ashaninka que vivem às margens do rio Amônia, perto da fronteira com o Peru.

Os índios afirmam que a empresa não lhes pediu autorização para uso do conhecimento sobre o murmuru, vegetal de gordura com capacidade hidratante; a Natura diz que as propriedades do murmuru já estavam documentadas em artigo científico.

O Ministério Público Federal, por sua vez, argumenta que esse artigo se baseou no conhecimento dos ashaninka. A empresa foi inocentada pela Justiça Federal do Acre, mas o recurso da procuradoria ainda será julgado pelo STJ.

'Bola de cristal'

Uma das principais queixas dos setor privado é a regra que requer o chamado contrato de repartição de benefícios entre as empresas e as comunidades antes que seja dada a autorização para acesso ao patrimônio genético brasileiro ou de conhecimento tradicional.

As empresas alegam que não é possível estabelecer compensações sem antes fazer a pesquisa que indicará a viabilidade econômica e o potencial de lucro de um produto.

"É preciso ter uma bola de cristal para fazer o acordo", critica Rodrigo Justos, assessor técnico da área de meio ambiente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA).

O projeto de lei prevê que a solicitação de autorização para pesquisa seja substituída, na maioria dos casos, por um simples registro eletrônico, com o contrato de repartição de benefícios sendo firmando até um ano depois que o produto for lançado no mercado. Os recursos vão diretamente para as comunidades ou para um fundo gerido pela União, dependendo do caso.

"Se o sistema informatizado for bem eficiente, será praticamente automático (o início da pesquisa). Hoje em dia, chega a demorar dois, três anos para se obter a autorização", disse a diretora executiva adjunta do Grupo FarmaBrasil (GFB), Adriana Diaféria.

O GFB representa laboratórios farmacêuticos nacionais e esteve à frente das negociações com o governo.

Instituições estrangeiras sem presença ou parceiros no Brasil serão submetidas a um processo mais burocrático.

Quando a pesquisa envolver práticas tradicionais haverá duas possibilidades. Para os conhecimentos que já estão amplamente difundidos na sociedade brasileira, não será necessária autorização. Já quando for possível identificar em que grupo tal prática surgiu, será preciso obter o consentimento prévio da comunidade.

O advogado do ISA Maurício Guetta acredita que na prática isso não acontecerá. Ele observa que há conhecimentos que têm origem identificável, mas que são compartilhados por mais de uma comunidade.

Como o PL não prevê expressamente a possibilidade de as comunidades negarem o acesso a sua técnica, ele teme que aconteça um "leilão" entre as comunidades, o que reduzirá o poder de negociação desses grupos com as empresas.

Na sua avaliação, as novas regras não respeitam a Convenção sobre Diversidade Biológica - acordo firmado dentro da ONU durante a ECO-92.

"Essa convenção garante importantes direitos as esses povos e comunidades, como o consentimento prévio para o acesso a seu conhecimento e a repartição justa e equitativa dos benefícios", afirma.

"Com as novas regras, a repartição dos benefícios passa a ser injusta e insignificante."

Interesses

Para Guetta, a elaboração do Projeto de Lei dentro do governo e sua tramitação no Congresso evidenciam a desigualdade no jogo de forças político.

O advogado do ISA reconhece ser legitimo que as empresas participem das discussões que afetam seus interesses, mas reclamou da "completa exclusão dos povos tradicionais do debate".

A BBC ouviu representantes dos diversos setores envolvidos - comunidades, agronegócio, cientistas e empresas farmacêuticas - e todos afirmaram que o PL que saiu do governo para o Congresso foi baseado em proposta apresentada pelo setor privado.

As discussões capitaneadas pela diretora do GFB Adriana Diaféria levaram cerca de três anos e contaram com o apoio de outros setores como cosméticos (Abihpec), produtos de limpeza (Abipla), indústria química (Abiquim), farmacos (Abifina e Alanac), CNI (Conferederação Nacional da Indústria) e Intistuto Ethos (que promove a responsabilidade empresarial e é ligado à Natura).

"O Grupo FarmaBrasil tinha como uma certa meta prioritária trabalhar nesse tema. Quando a gente foi conversar no Ministério do Meio Ambiente, o (secretário-Executivo, Francisco) Gaetani, gostou da proposta e passou a chamar as outras entidades para conversar conosco. A gente fez uma coalizão", contou Diaféria.

O presidente da Sociedade Brasileira de Genética, Fabricio Santos, disse que "a comunidade científica teve um papel muito pequeno" nas discussões.

Ele elogiou mudanças que vão estimular a pesquisa aplicada (aquela que gera produtos), mas disse que as novas regras burocratizam a pesquisa básica, que visam à preservação ambiental.

"Hoje essa proposta reflete esse grande consenso que foi negociado com todos os setores e com o governo. Teve o conhecimento da academia, teve o conhecimento das comunidades, mas não teve uma participação (de cientistas e comunidades) na construção propriamente dita", observou Diaféria.

As comunidades tradicionais contaram com apoio de alguns parlamentares de partidos como PSOL, PT e PSB, mas não conseguiram influenciar os debates no Congresso a ponto de terem suas demandas atendidas. Todas as emendas apresentadas a seu favor foram rejeitadas pela maioria dos deputados na noite de terça-feira.

"São povos invisíveis, claro, porque infelizmente não possuem qualquer representação política, seja no Poder Executivo, seja no Poder Legislativo. Não existe deputado índio", observou Guetta, do ISA.

O setor agrícola rebateu as reclamações. "As comunidades são ouvidas desde o ano 2000. Na verdade eles é que são os contemplados, porque todos os outros (envolvidos na questão) são pagadores (de beneficios)", afirmou Justus, da CNA.

O secretário de Biodiversidade e Florestas fez uma mea culpa sobre o pouco espaço dados as comunidades no debate. Roberto Cavalcanti disse que o governo será mais ativo ao incluir esses grupos na discussão das regras que vão regulamentar a nova lei. "Estamos correndo atrás", afirmou.

Após a aprovação do PL na Câmara, a Natura enviou nota à BBC dizendo que as novas regras "encerrarão as dúvidas que impedem o avanço da economia e da pesquisa científica baseadas na sociobiodiversidade brasileira".

A empresa destacou que mais de R$ 11 milhões de reais foram repartidos em benefícios pela empresa em 2013, conforme divulgado em relatório anual. O Ministério do Meio Ambiente não soube informar quantas compensações já foram distribuídas no total.