O glaciologista brasileiro Francisco Eliseu Aquino ouviu dias atrás de seus colegas da estação franco-italiana Concórdia, localizada no Platô Antártico, que havia algo errado com a previsão do tempo para a região. Como seria possível que aquele local, onde está o Polo da Inacessibilidade - a região mais fria e remota do mundo - pudesse marcar -12°C, algo entre 40-47°C mais quente que o normal? Isso só seria possível se houvesse uma invasão de ar quente e úmido dos trópicos capaz de romper a proteção dos constantes ventos polares nesta área elevada e de ar extremamente seco —cenário totalmente inédito. A previsão se confirmou na sexta-feira (18) e em dose dupla: a anomalia de calor foi observada também no polo Norte, que registrou temperaturas cerca de 30°C acima do esperado, além da ocorrência de outra onda de calor sobre a Índia. "Se essa temperatura tivesse sido registrada na região da Península Antártica, onde está, por exemplo, a base brasileira, eu continuaria surpreso, mas menos apavorado", afirma Aquino, que é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e especialista no continente antártico. Imagens de satélite detectaram sobre a Antártica um significativo rio atmosférico —grande corredor de vapor de água— que "prendeu" o calor sobre aquela região. A Antártica tem cerca de duas vezes e meia o tamanho do Brasil e concentra 90% do gelo do planeta. Sua península está muito mais próxima ao continente e sujeita a mais variações de temperaturas do que seu platô, localizado na porção oriental e a mais de 3 mil metros de altitude. De acordo com o pesquisador, é impensável o aquecimento desta parte da Antártica sem que esteja havendo uma alteração profunda no clima. "Do ponto de vista do clima moderno, nós também desconhecemos a ocorrência de duas ondas de calor simultâneas nas regiões polares", afirma. Os polos têm sido as regiões que sinalizam antecipadamente a mudança do clima, e anomalias de calor tão intensas e simultâneas em um momento de transição de estações —o Hemisfério Sul caminha para o Outono, e o Norte para a Primavera— são "algo inimaginável e o pior cenário para nós, climatologistas antárticos", afirma Aquino. Ele destaca outra anomalia. O rompimento do vórtice polar ártico, responsável por ondas de frio, de calor, inundações severas e outros eventos extremos no Hemisfério Norte, começa a ser mimetizado na metade oposta do planeta. "O que está chamando atenção é que nós estamos vendo esse mesmo mecanismo ser mais intenso e mais presente no Hemisfério Sul, o que também não é esperado." O último relatório do IPCC (o painel de mudanças climáticas das Nações Unidas) divulgado em 28 de fevereiro alertava para a possibilidade de fenômenos extremos simultâneos, como ondas de calor, o que potencializaria seus impactos. Mas este risco estaria previsto em um cenário de aquecimento muito maior do que o atual. Hoje a Terra está apenas 1,2°C mais quente do que antes da revolução industrial, e o Acordo de Paris tenta limitar este aquecimento a 1,5°C, o que, em tese, evitaria as piores consequências das mudanças climáticas. "A Antártica é um lugar de extremos. Há ciclones explosivos, anomalias quentes, com grandes amplitudes, mas não no interior", explica Aquino. "Aquele é o lugar mais frio e inóspito, difícil de pesquisar, de fazer expedição, de obter dados, de entender bem —e até que nós temos hoje um bom conhecimento acumulado—, mas as mudanças na circulação atmosférica do Hemisfério Sul estão nos obrigando a ampliar o que nós classificávamos como cenários ruins". |