Era Responsabilidade Social, virou Sustentabilidade e agora é ESG, do inglês Governança Ambiental e Social. Enquanto o setor privado escolhe as palavras, a crise climática piora: os últimos seis anos foram os mais quentes desde 1880, segundo a Organização Meteorológica Mundial. Se é exatamente a forma de fazer negócios que está levando o planeta ao seu limite ecológico, não será possível mitigar a mudança do clima sem a participação ativa das empresas. Por isso, a iniciativa Pacto Global da ONU está oferecendo em junho, mês do meio ambiente, um curso para engajar o setor privado brasileiro em uma nova terminologia: a justiça climática. O conceito de justiça climática inverte a perspectiva que só enxerga no debate climático oportunidade de novos negócios e marketing verde. Ele expõe a enorme responsabilidade das empresas em mitigar o impacto social e ambiental dos seus próprios negócios. E destaca que esses impactos afetam primeiro os mais vulneráveis, que são os que menos contribuíram para a crise do clima. Esta coluna entrevistou a cientista Patrícia Pìnho, uma das palestrantes do curso do Pacto Global. Ela é pesquisadora do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e membro do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU). Para a pesquisadora, o que está em jogo é o modelo de desenvolvimento socioeconômico. *** Por que as empresas precisam incorporar o conceito de justiça climática? O conceito de justiça climática começou a aparecer com mais proeminência nos relatórios do IPCC a partir de 2014, no âmbito de impactos e vulnerabilidades. Embora as mudanças climáticas sejam globais, seus impactos são experienciados de maneiras diferentes por cada população, dependendo da geografia, da cor da pele, da etnia, do poder aquisitivo, do gênero e da idade. Populações impactadas de forma desproporcional também têm menor capacidade de resposta e são as que menos contribuíram historicamente para a crise climática, ou seja, com a emissão de gases de efeito estufa. Os países do norte global, que chamamos desenvolvidos, foram os que mais emitiram historicamente em um processo em que o setor privado está diretamente implicado. Essas emissões geraram lucro para eles, e ônus para todo o planeta. Justiça climática é justamente minimizar os riscos desproporcionais para aqueles que menos têm contribuído para a crise climática. Sua explicação se assemelha ao que outros especialistas definem como racismo ambiental. Como você relaciona esses dois conceitos? Você trouxe o cerne da questão. A mudança climática não escolhe quem ela vai atingir —afeta a todos—, mas há pessoas que estão na linha de frente dos impactos, e elas têm cor: são as pessoas negras, os indígenas, os povos tradicionais e os mais pobres em geral. O legado colonial empurrou algumas populações e também alguns ecossistemas para um limite. Quando falamos de clima, nós entendemos que as desigualdades não são apenas de poder aquisitivo, mas múltiplas. E na outra ponta, quando falamos de responsabilidades, não estamos no campo da culpabilidade, mas da atribuição —ou seja, quando a gente consegue reunir evidências científicas para atribuir os extremos climáticos às emissões históricas. No setor privado brasileiro, o debate climático está mais centrado nas oportunidades econômicas do que nas responsabilidades de cada empresa. Como a justiça climática entra nessa conversa? Existe um incômodo sobre a forma como as empresas discutem clima, muitas vezes de forma leviana ou como simples oportunidade de negócios —dos selos verdes aos mercados de carbono. Sem dúvida a descarbonização da economia é uma oportunidade, mas o que está na berlinda é a agenda de desenvolvimento socioeconômico. Por exemplo, as mineradoras, que têm impactos ambientais dos mais graves, não apenas para as comunidades do entorno, mas para as gerações futuras e para os ecossistemas em si, enquanto as ações de compensação são altamente insuficientes. Ou seja, ninguém paga essa conta. Outra discussão é com o setor bancário, que financia a operação de grandes poluidores, como o setor de commodities agrícolas e de combustíveis fósseis. Há um movimento global hoje para que sejam incorporadas condicionantes climáticas para o setor financeiro. A justiça climática será um conceito que guiará a tendência crescente de processos judiciais contra o setor privado por seus impactos ao planeta. As empresas serão chamadas no bolso. Qual seria o papel da ciência do clima nessa tendência de judicialização climática? A via judicial será muito importante para fazer pressão para uma mudança que não vai ocorrer espontaneamente. O setor privado trata ambiente, clima e pessoas como externalidades. O que a ciência traz com segurança são as evidências do que está acontecendo com o clima e as causas. O quão crucial é engajar o setor privado na luta climática para o cumprimento do Acordo de Paris? As perdas econômicas já são substanciais. A degradação dos recursos naturais já é expressiva. A meta [do Acordo de Paris] de manter o aquecimento global abaixo de 1,5ºC nos dá a chance de evitar perdas irreversíveis. Por exemplo, os recifes de corais, fundamentais para os estoques pesqueiros e para o amortecimento de tempestades na linha costeira. Acima de 1,5ºC, esses ecossistemas desaparecem, e nenhuma ação humana, mesmo com toda a tecnologia e capacidade de investimento existente, será capaz de desfazer isso. Ao responsabilizar as empresas, podemos acelerar a agenda de adaptação, resguardando as pessoas mais vulneráveis, ao mesmo tempo em que novos negócios prosperam, de modo mais estratégico e inteligente. |