Um estudo divulgado hoje (25) pelo IEMA (Instituto de Energia e Meio Ambiente), em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, afirma que a atual crise no transporte público pode se deteriorar se o país não for capaz de estabelecer um novo modelo de financiamento para o setor. A análise aponta para um esgotamento do modelo baseado na tarifa paga pelo usuário, tanto porque houve uma perda significativa de passageiros - consolidada após a pandemia -, como pelo aumento dos custos. Isso acontece em meio à corrida pela descarbonização dos transportes em nível global, ou seja, a troca de veículos poluentes por modelos elétricos de baixa emissão, o que projeta mais custos futuros para o setor. Se uma mudança estrutural em nível federal não for feita, a pesquisa afirma que a crise atual levará à desestruturação profunda deste serviço nas cidades brasileiras. Os pesquisadores analisaram onze alternativas que estão sendo implementadas por cidades brasileiras e concluíram que elas precisam de apoio federal para se consolidar. Também analisou iniciativas em discussão no Congresso e concluiu que elas privilegiam uma modernização energética conservadora, isto é, apoiam mais o transporte individual do que o público e coletivo. A coluna Crise Climática entrevistou o gestor ambiental e especialista em mobilidade urbana Renato Boareto, autor principal do estudo. Para ele, o país terá que escolher se quer estruturar seu transporte público como um direito constitucional, ou se assistirá ao iminente colapso deste segmento. Cínthia Leone - O estudo aponta para uma limitação do atual modelo de financiamento do transporte público baseado no pagamento de tarifas pelos usuários. Como chegamos até aqui? Renato Boareto - Nas décadas de 1970 e 1980, o processo de urbanização fazia com que houvesse sempre uma demanda crescente de passageiros. O custo era dividido pelo número de usuários e encontrava-se uma tarifa de equilíbrio. Nos últimos anos, a situação é outra: há perda de passageiros e enorme inflação setorial. O preço do diesel é o maior exemplo disso: ele era de 9% a 10% do custo total do sistema, agora é de 30% a 32%. Você também teve queda de passageiros com a pandemia, nível elevado de desemprego e, com isso, menos vale-transporte. Isto é uma crise estrutural. Juntamente com ela, está a necessidade de descarbonizar os sistemas de transporte. O nosso estudo alerta que essa combinação de fatores torna mais importante ainda a criação de um novo modelo de financiamento em que não somente o usuário pague. Como seria um modelo alternativo de financiamento? Há cidades brasileiras que estão buscando alternativas, e nós analisamos esses casos no estudo. Algumas estão subsidiando o sistema: mantém uma tarifa razoável e complementa com recursos públicos. Outras, principalmente as pequenas, que estão implementando tarifa zero, e o poder público banca todo o sistema de transporte. Uma ideia é a taxa-transporte, adotada, por exemplo, em Vargem Grande Paulista. Neste caso, as empresas instaladas no município contribuem para o custeio do transporte como um todo. É possível também implementar o pagamento de um valor adicional no IPTU pela valorização dos imóveis em decorrência do aumento da oferta de transporte público. Em São Paulo, as áreas próximas ao metrô sofrem valorização imobiliária. Em muitas cidades do mundo, há mecanismos para reverter pelo menos parte desta valorização no financiamento do transporte. As operações urbanas consorciadas também podem incluir mecanismos para reverter parte dos investimentos em transporte. Independente do modelo, a base da discussão é que o transporte público é um fator de desenvolvimento sustentável de uma sociedade. Ele traz acessibilidade ao emprego, à educação, ao lazer, ao desenvolvimento econômico. Então é justo que toda a sociedade participe do seu financiamento. Você dá exemplos do que pode ser feito em nível local, mas o que poderia ser feito em nível federal? As iniciativas em nível municipal e estadual podem ser fortalecidas por medidas em nível federal. O que a gente tem defendido é reestruturar esta rede de transporte público, ter novas fontes de financiamento, descarbonizar o setor no médio e longo prazos e garantir a acessibilidade. Na Europa, esta agenda aparece como estratégia de mitigação das mudanças climáticas. Lá, as diretrizes gerais da União Europeia são internalizadas por cada país conforme sua realidade populacional, renda e nível de desenvolvimento. O Brasil também tem essas variáveis, e é possível desenvolver aqui um programa nacional de apoio ao transporte público considerando esta diversidade regional. A meta é melhorar a qualidade do transporte público e deixar para o usuário uma tarifa razoável, eventualmente tarifa zero. Há um risco de aumento de custos? Não é porque você vai buscar uma nova fonte de financiamento que este custo pode crescer sem limites. Uma das grandes deseconomias do transporte público é o congestionamento, que paralisa a frota de ônibus. Implantar faixas e corredores exclusivos é uma forma de reduzir o custo operacional. Aumentar a velocidade dos veículos o torna mais atrativo a novos usuários. Se você combinar a melhora desta infraestrutura, valores adequados de tarifa - ou tarifa zero - e veículos com novas tecnologias focadas em descarbonização, você consegue implantar um círculo virtuoso. Como as empresas de transporte se posicionam nesta discussão? Sempre houve uma grande crítica do setor pela criação de gratuidades, por exemplo, para estudantes, sem criar fontes adicionais de financiamento. Isso faz com que o custo recaia sobre o usuário pagante. É por isso que se discute a criação de novas fontes de ingresso de recursos, para permitir, inclusive, ampliar direitos. Hoje o que os empresários discutem é a separação da tarifa da remuneração das empresas. E é possível engordar subsídios tarifários com outras formas de financiamento. O transporte público é um direito social previsto na Constituição. O custo e a tarifa não podem ser um impedimento para garantir este direito. Os combustíveis fósseis são um componente importante do custo do transporte, mas a eletrificação da frota é muitas vezes freada sob o argumento do custo de transição. Essa mudança não se pagaria com a retirada do combustível desta equação? O investimento inicial em adquirir veículos elétricos ainda é bastante alto, mesmo que você tenha uma redução posterior no custo operacional. O desafio é equacionar este investimento no início. Na União Europeia, foi estabelecida uma política de compras públicas para aquisição desses ônibus mais caros. No Chile eles estabeleceram uma nova forma de contratação: a empresa de energia se associa a um fornecedor de ônibus, outra empresa cuida da operação da frota, outra cuida da bilhetagem, e a remuneração depende da qualidade. E com um fundo garantidor desses contratos, novos investidores foram atraídos para o sistema de transporte, viabilizando a aquisição desses veículos novos. Ou seja, além do custeio, nós temos que falar de novas formas de contratação e remuneração dos serviços de transporte público. Com todas as urgências que o Brasil tem hoje, quando você prevê que essas discussões avancem? O país terá que fazer uma escolha. Ou a política pública vai estruturar este serviço como um direito social, ou vamos viver uma crise estrutural nos próximos anos. O transporte público não morre de uma hora para outra - ele vai definhando. Hoje já temos o ressurgimento do transporte informal clandestino nas periferias. A discussão climática atual acaba também por fazer deste tema uma oportunidade. Ao investir em transporte público é possível ampliar direitos, reduzir desigualdade, gerar empregos e oportunidades, ao mesmo tempo em que reduzimos as emissões do setor de transporte. Esta é uma discussão estratégica em um momento histórico para as cidades grandes e médias brasileiras. Os aumentos de tarifas são um fator de desestabilização social. Os protestos de 2013 tiveram seu estopim no aumento de 0,20 centavos. Isto faz parte desta crise que você antevê? Sim, inclusive os protestos no Chile em 2019 também tiveram origem no aumento da tarifa do transporte público. Lá, a primeira resposta do poder público foi equivocada. Eles propuseram que a tarifa poderia ser mais baixa se as pessoas usassem o sistema de madrugada, e isso gerou uma reação violenta da população. É por isso que no nosso estudo estamos focando na política pública: como o Estado responde a esta crise que está se desenhando para os próximos anos? A nossa avaliação é que apesar de existirem iniciativas importantes no país, elas são insuficientes para dar resposta na velocidade que o país precisa. Os ônibus elétricos ainda parecem uma realidade distante das cidades brasileiras. Falta uma política industrial? Nos casos que analisamos descobrimos que há uma dificuldade muito grande na compra de veículos elétricos. Curitiba apontou, por exemplo, que no Brasil ainda não há ônibus biarticulado elétrico à bateria para operar nos corredores da cidade. Outro gargalo foi apontado pelo Rio de Janeiro: a capacidade de fornecimento no país ainda é baixa, muito inferior ao prazo que eles precisam para renovar a frota atual. O que a China fez em relação a este problema? Estabeleceu um apoio de dez anos para suas indústrias, e, a partir de 2019, retirou este apoio fazendo com que só restassem as empresas que se desenvolveram adequadamente para disputar mercado. Hoje a China é o maior fabricante de ônibus elétricos do mundo. O México também sinalizou neste sentido para internalizar a produção de elétricos. O Brasil já é um dos maiores produtores de ônibus do mundo, tanto de chassi como de carroceria, inclusive exportando para a América Latina. Isso significa que já há uma base para desenvolver esta política industrial. Se isso não for feito, o Brasil terá que importar ônibus elétrico, o que não é razoável pelo tamanho do país e porque isso coloca em risco sua própria indústria. PUBLICIDADE | | |