O desmonte das políticas de apoio à agricultura familiar reduziram os estímulos à produção de alimentos diversificados e saudáveis voltados ao mercado interno. Sem alternativas, os pequenos produtores que sobreviveram no campo migraram para o modelo do agronegócio de commodities de exportação, dominante no sul do país. Essas afirmações são de um novo estudo divulgado esta semana pela ANA (Articulação Nacional da Agroecologia). A pesquisa foi conduzida por especialistas das universidades Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Livre de Berlim. Segundo o texto, o desmonte das políticas voltadas aos pequenos produtores atuou em conjunto com o enfraquecimento da legislação ambiental para favorecer deliberadamente determinados segmentos da agropecuária. A pesquisa defende a agroecologia como o modelo adequado para fixar a população rural, aumentar a resiliência agrícola a choques climáticos e garantir a segurança alimentar do país. "A chegada de Bolsonaro à presidência marcou o fim do pacto político pela coexistência da agricultura familiar e do agronegócio", Paulo Niederle, professor da UFRGS e um dos autores do estudo. Para ele, houve uma ofensiva de setores políticos do agronegócio na perspectiva de que só existe uma agricultura no Brasil e quem for produtivo vai se beneficiar. "Claro que esta visão de produtividade só contempla o modelo de agricultura familiar implantado no Sul e voltado às commodities." Segundo o estudo, quase 70% dos recursos do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), vai para fazendas do sul do país voltadas a commodities de exportação. "O uso da imagem dos pequenos produtores em comerciais do Agro é uma verdadeira propaganda enganosa. O agronegócio é um setor que expropria os territórios das comunidades tradicionais e avança sobre os biomas para expandir monoculturas", afirma Flávia Londres, secretária-executiva da ANA. "A lógica da agricultura familiar camponesa é outra. Ela conserva os recursos do território, está voltada aos mercados locais e aos alimentos saudáveis. São modelos em disputa e que não convivem de forma harmônica." Entre os programas descontinuados ou que tiveram seus recursos reduzidos, o estudo destaca o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) que direcionava compras públicas de produtores oriundos da agricultura familiar para escolas, hospitais e projetos sociais. Entre 2012 e 2014, o programa obteve em média R$ 1 bilhão ao ano, e a partir de 2015, o montante foi para cerca de 600 milhões. Em 2019, a redução foi drástica: R$ 168 milhões, e no ano passado este valor foi ainda menor, de R$ 135 milhões. "Quando você garante um mercado institucional para a agricultura familiar, você estrutura a produção em comunidades inteiras", explica Londres. "Esses programas nunca tiveram um volume considerável de recursos - agora são quase nada -, mas eles tinham um papel de incluir outras formas de agricultura'', diz Niederle. De acordo com a pesquisa, os cortes de recursos e a deslegitimação da agricultura familiar têm papel central na atual insegurança alimentar no país. "Se você perguntar para muitos agricultores pequenos que plantam commodities, eles vão dizer que estão contentes, o preço das commodities no exterior está alto e eles estão ganhando muito dinheiro. Mas coletivamente, o impacto é terrível", avalia Niederle, citando o desabastecimento interno, a inflação dos alimentos e o aumento da concentração de terras. "Hoje nós estamos importando boa parte da nossa comida do dia a dia, como o feijão. E a extinção dos estoques reguladores, solicitada pelo agronegócio, dificulta o combate à inflação dos alimentos", diz Niederle. "Chegamos ao absurdo de importar soja. Nossos produtores exportaram de maneira tão inconsequente, que os fabricantes brasileiros que usam a soja como matéria-prima tiveram que importar dos EUA", recorda Londres. Outra política desmontada sob o atual governo e destacada pelo relatório é a assistência técnica rural com enfoque agroecológico. "Hoje, a assistência técnica pública diz para o produtor familiar que tudo o que ele faz é errado, que a semente que ele usa é ruim, que se ele não usar adubo sintético e agrotóxico, não vai produzir - um discurso que busca, inclusive, fazer com que o pequeno produtor se sinta atrasado e ridicularizado", afirma Londres, que enfatiza que até para obter crédito nos bancos o produtor precisa provar que segue o modelo tradicional. A atual política para o campo não é sustentável para os pequenos produtores no longo prazo, segundo a secretária executiva da ANA. "O produtor pequeno não tem como competir, ele vai sendo pouco a pouco engolido pelos grandes." "Há uma consciência cada vez maior de que o modelo do agronegócio não serve para a agricultura familiar", avalia Londres. "Os produtores que estão optando pela agroecologia têm muito mais chances de sobreviver no longo prazo do que aqueles que seguem pelo caminho da especialização produtiva." "Os sistemas agroecológicos são, por definição, adaptados às condições ecológicas locais. Eles resistem melhor às variações climáticas e contribuem para mitigar variações bruscas de temperatura e umidade" explica Niederle, que ressalta que a diversificação de culturas neste modelo diminui os riscos de quebras de safra. "Em um sistema com muitas espécies de plantas, cada uma sentirá o efeito de seca, onda de calor e inundação de um modo diferente. Se você tem uma lavoura apenas de soja, os efeitos de eventos extremos serão igualmente distribuídos." PUBLICIDADE | | |