Ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e relator do mensalão, Joaquim Barbosa assinou há dez dias sua desfiliação do PSB (Partido Socialista Brasileiro). Fez isso na maciota, como é de seu feitio. "Foi uma escolha minha. Pensava nisso havia meses; não houve traumas", disse-me num telefonema. Foram quase quatro anos ligado ao partido pelo qual "praticamente foi candidato", segundo suas palavras, na eleição que teria disputado contra Jair Bolsonaro. Àquela altura, chegou a ter 10% das intenções de voto. Falava-se dele como a terceira via factível, o verdadeiro outsider, o nome capaz de despolarizar a disputa. Entretanto, no auge das especulações, com a ficha partidária assinada, sepultou a candidatura com uma lacônica mensagem no Twitter. "Está decidido. Após várias semanas de muita reflexão, finalmente cheguei a uma conclusão. Não pretendo ser candidato a Presidente da República. Decisão estritamente pessoal".
A oito meses de outro pleito, o nome do ex-ministro volta a desfilar com o modelito de "desimpedido" pelas passarelas eleitorais. Perguntado se será candidato, responde: "a princípio, não". Quando se quer saber se um dia vai ser, diz que as pessoas o procuram. "Há conversas, depende." À questão "depende de quê", esclarece: "Continuo muito reticente em relação à política. Não preciso da política". E a política, precisa dele? Joaquim Barbosa riu. "Esse é o problema. Entrar na política é uma guerra, é um jogo sujo. As pessoas se incomodam até mesmo se você pensa em entrar para a política", afirmou. "Veja o que aconteceu com o Moro. Precipitou-se, saiu muito cedo, está apanhando adoidado." Em janeiro, Sergio Moro - também ex-juiz e candidato declarado à Presidência - esteve em sua casa. O encontro estava marcado desde novembro. Ao disse-me-disse que um dos temas da conversa teria sido uma sondagem para a vaga de vice, Barbosa foi categórico: "De jeito nenhum, não teve nada disso. Nunca vou ser vice na chapa de ninguém. Não há hipótese". Garantiu que as especulações de que teria sido usado por Moro, em busca de holofotes, eram balela. Sobre o que conversaram? "Muitas coisas". E nada mais comentou. Durante todo o tempo em que foi filiado ao PSB, ainda que fosse um dos nomes de maior visibilidade da legenda, jamais participou de decisões internas. "Nunca fui consultado para nada", disse. Assistiu de longe, sem acesso aos bastidores, à costura do partido para apoiar a candidatura do ex-presidente Lula, mesmo abrindo mão do próprio capital político — no caso, dele próprio. "O partido que poderia me ter nunca se interessou em me lançar candidato", disse. Assim, como muitos casamentos precipitados, a relação logo se mostrou sem sentido. Decidiu então que era hora de mudar de ares. "Não tenho plano B. Estou livre, estou solto", afirmou. Ele classificou de "jogada de mestre" a ideia da chapa Lula-Geraldo Alckmin: "Só um cara muito experiente politicamente para fazer um troço desses". Mas acha que o Partido dos Trabalhadores está comemorando antes da hora. "Esse jogo está longe de estar definido, como os analistas estão dizendo. Tem que observar, ver o que vai acontecer ainda. É preciso esperar o começo da campanha de verdade." É quando ele acha que a polarização Lula-Bolsonaro "vai atingir o paroxismo, vai sair faísca no escuro" - e aí, quem sabe, o ambiente poderá ficar propício para novidades. Comentei com ele que um empreiteiro me dissera, durante um almoço recente em Lisboa, que, com a vitória ao alcance da mão, achava que Lula deveria redobrar os cuidados com a segurança pessoal por correr risco de ser assassinado. "Não duvido. Essa turma do outro lado é sanguinária, não tem limites. Pode vir um doido e fazer isso mesmo." E emendou: "Quem tá de bobeira aí é o Moro, que fica andando de lá pra cá." Era um começo de tarde de fevereiro no Rio, e ele ia a um cartório. Falava comigo pelo celular. Na véspera, também havíamos conversado e ele estava na fila do banco. "O senhor só faz coisas chatas", comentei. Ele lamentou ter tido de antecipar a volta para o Brasil por causa da pandemia. Havia passado uma temporada no fim do ano na Espanha, mas a ômicron mudara seus planos. A visita a Portugal fora adiada. Disse conhecer pouco o país. Tem boas lembranças quando se trata de comer e beber bem, mas cultiva uma lamentável memória no que diz respeito a como Portugal lida com seu passado colonial e, por consequência, como encara o racismo. Quando ainda estava no STF, convidado para um evento jurídico, teve que ouvir de um magistrado se ele também concordava com as benesses do processo de colonização e se sentia grato por ele. "Portugal não fez e não quer fazer o dever de casa quando o assunto é racismo. Está no nível do que o Brasil era há 25 anos, ainda no negacionismo, na ideia de que os colonizadores foram bonzinhos, de que não há esse problema no país", disse. "Fuja de toda bibliografia e intelectualização desse debate aí. É vergonhoso." Segundo ele, a elite brasileira pelo menos enxerga hoje que há um problema estrutural grave, que merece ser encarado de frente. "A questão racial e as decorrentes da escravidão estão na raiz de quase todos os problemas brasileiros." Quando voltou ao Brasil para as festas de fim de ano, foi "atropelado por uma doida de bicicleta" na orla de Ipanema (Barbosa parece atrair doidas sobre duas rodas: uma vez, em Paris, por pouco não o atropelei de moto. A culpa era dele, que atravessou o sinal fechado em frente à Ópera da Bastilha. Ele ri quando se lembra da esdrúxula cena). O acidente no Rio o deixou no estaleiro por semanas. Ao contrário de muita gente, Joaquim Barbosa não recorreu a remédios tarja-preta, ou triplicou o consumo de álcool, para aguentar o rojão. "Estou ótimo. Não bebi nada na pandemia. Fiquei saudável e li muito." Voltamos a falar da possibilidade de se candidatar. De quatro em quatro anos, sempre parece que ele será chamado para disputar o Planalto. "Esse chamado ainda não veio", comentou. "Talvez venha depois que sair essa notícia da minha desfiliação". Enquanto isso, ele disse, "estou caladinho, quietinho no meu canto". ____ ESTA NEWSLETTER Há dois anos e meio, deixei o Brasil com duas malas, minha melhor bolsa, o laptop e meus dois filhos. Não havia pandemia, Lula mofava numa cela, o Clubhouse era a grande aposta dos entendidos para as redes sociais, Black Lives Matter não passava de uma frase inspiradora, Meg e Harry viviam em Londres, Bolsonaro estava todo prosa. Morei primeiro em Oxford, na Inglaterra, e depois em Lisboa, de onde passo a escrever semanalmente sobre pessoas, lugares e situações luso-brasileiras. Ou, às vezes, sobre mais do que isso. Fiz de tudo em jornalismo nas últimas três décadas. Fui repórter da Folha de S.Paulo, editora da Veja, do Jornal do Brasil, da revista piauí, diretora de redação da Época. Aprendi que perguntar não ofende, que ninguém é perfeito, que existe mais gente boa do que má, que nunca fiz amizades diante de um copo de leite, que quem ri por último nem sempre ri melhor e que o creme (o creme!) compensa. E que Portugal e Brasil - esta nebulosa de países irmãos, acordo ortográfico, mal-entendidos, laços indissolúveis, anedotas — têm tanto e tão pouco em comum. O poeta português Alexandre O'Neill dizia, a propósito do tamanho de seu país, que corremos o risco de falar mal de alguém nos jornais e, no dia seguinte, darmos de cara com esse alguém no elevador. Dada a quantidade de compatriotas hoje aqui, apostaria que, num elevador cheio, dois deles seriam brasileiros. É com um pé cá e outro acolá, de olho nos patrícios e nos locais, que irei tocar essa newsletter. Ela não terá só reportagens ou crônicas. Será mais que um relato frio e menos do que um tratado de geopolítica. Vai tratar dos temas sérios, dos irrelevantes, dos espantosos, dos frívolos e dos tão essenciais quanto os cremes. Não nessa ordem, não na mesma extensão, mas com igual galhardia, graça e gana de aprender. Divirta-se. ____ Arrasta-se há semanas a discussão sobre a indicação do nome que iria representar Portugal na próxima Bienal de Veneza. O júri era composto por três mulheres e um homem, todos caucasianos. As mulheres deram as maiores notas à artista Grada Kilomba. A nota recebida pelo quarto jurado foi tão baixa que a desqualificou para seguir no páreo. O debate fez sangrar com força a ferida do racismo, do colonialismo e — por que não? — do amiguismo nas artes. Kilomba é portuguesa, negra, vive em Berlim, tem doutorado em filosofia e trabalhos expostos nas maiores praças do mundo, é autora de livros sobre raça, gênero e pós-colonialismo. Um lado diz que ela foi rejeitada sob argumentos estapafúrdios e acusam o jurado de racismo. Do outro, fala-se que o jurado — que se diz alvo de uma campanha difamatória — teria total liberdade para escolher o trabalho que lhe apetecesse; que a acusação tinha ares de inquisição. O escolhido foi um artista homem. Branco. Para rechaçar acusações identitárias, veio à tona até sua identificação de gênero — é não-binário — e foi reforçado que a instalação premiada tem temática queer. Ainda não se sabe como isso termina e quem vai mesmo para a Itália. Reportagens sobre pais preocupados com os filhos falando "brasileiro" por conta de youtubers famosos, acadêmicos que lançam luz sobre um antilusitanismo tupiniquim no Brasil inundam o noticiário cá e lá — o que reforça antipatias e estranhamentos sobre questões da imigração entre os dois países. Quando bolsista da Fundação Biblioteca Nacional, o pesquisador carioca Mario Luis Grangeia tratou do tema sob uma perspectiva inédita: debruçou-se sobre a obra de cânones da literatura portuguesa para encontrar referências de como os autores retratavam a emigração de seus patrícios ao Brasil desde quando ainda era uma colônia. "Era um estigma nacional. Como se apenas o fato de um português ter passado pelo Brasil já o tornasse menos tolerável e mais risível", disse-me Grangeia. Em fevereiro de 1872, em um dos capítulos de "Uma Campanha Alegre", o escritor Eça de Queiroz discorreu sobre o português que fora para o Brasil e voltava para Lisboa — abastado, soberbo e indolente: "(...) grosso, trigueiro com tons de chocolate, pança ricaça, joanetes nos pés, colete e grilhão de oiro, chapéu sobre a nuca, guarda-sol verde, a vozinha adocicada, olho desconfiado, e um vício secreto. É o brasileiro: ele é o pai achinelado e ciumento dos romances românticos: o gordalhufo amoroso das comédias salgadas: o figurão barrigudo e bestial dos desenhos facetos: o mandão de tamancos, sempre traído, de toda a boa anedota". Em vigor desde 2009, o acordo ortográfico da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) ainda é motivo de debates acalorados nos dois lados do Atlântico. É muito comum ver na imprensa portuguesa um aviso no fim do texto de alguns colunistas e escritores: "Esse artigo não respeita as regras do acordo ortográfico". A rigor, falamos a mesma língua, mas, como diz o escritor, estudioso do nosso vernáculo e meu amigo, Sérgio Rodrigues, a ilusão de um idioma único "não passa de conversa fiada". Por isso, é sempre bom saber como dizer "eu avisei" em todo canto do mundo. Aqui é: "Eu bem disse". PUBLICIDADE | | |