O jornal A Voz do Operário tem 140 anos. Quando foi fundado, cerca de 80% da população de Portugal era analfabeta (hoje, são menos de 5%). Um grupo de trabalhadores da indústria do tabaco — vendo-se sub-representados em suas queixas contra os patrões na imprensa e sem perspectiva de escolarização para os filhos — resolveu montar uma cooperativa que reunisse escola e veículo de mídia. Nasceu a Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário, mantida com os caraminguás doados pelos sócios. Três décadas depois, a escola já tinha mais de 4.000 alunos e o semanário se transformara no megafone do proletariado. Veio a ditadura, a repressão, calaram a Voz. Depois do 25 de abril, o projeto ganhou força, apoiado pelo novo governo, com atuação ampliada para eventos culturais, desportos, serviços sociais. Hoje, a publicação é mensal, a escola ainda oferece ensino de qualidade e métodos alternativos (as crianças cantam Grândola, Vila Morena desde o jardim de infância) e a sede — um edifício neobarroco, de portas largas, pilares, vitrais e azulejos por todo lado — passou a abrigar exposições, concertos e também festas, muitas de cunho político, como a que aconteceu no domingo (24). Organizada pelo Núcleo do Partido dos Trabalhadores de Lisboa, a 1ª Festa do Lula em Lisboa reuniu cerca de 100 pessoas — a maioria imigrantes brasileiros — no pátio enfeitado com flâmulas coloridas, fotos do candidato, bandeiras do Brasil, do MST, do PT e balões. Com entrada sugerida a 4 euros, que incluía cerveja ou caipirinha e uma coxinha de galinha de bom tamanho, o encontro inaugurava uma série de festividades previstas pelo partido até as eleições brasileiras. Cheguei por volta das 17h e fui recebida com muitos sorrisos. Até demais. Um desconhecido me saudou à distância, balançando o punho da mão fechado. Foi quando percebi que a minha camisa alaranjada estava sendo enxergada como vermelha. Ofereceram-me um adesivo com a cara do homenageado. Agradeci e recusei sob o olhar enviesado do companheiro do punho. A turma era variada. Jovens casais com filhos bebês, simpatizantes que haviam acabado de voltar da praia (ainda tinham areia nas Havaianas), mocinhas de saias comprida e cabelo amarrados em coques desgrenhados, homens e mulheres grisalhos com ar de quem estava em casa, militantes vestidos com camisetas vermelhas com os dizeres "O Voto é Secreto" (que estavam à venda por 15 euros). E playlist de música brasileira, claro. Um bar foi improvisado com cardápio restrito. As torneiras de chope, vendido a 1 euro, traziam estampadas o rosto de Lula no lugar da marca da bebida. Também havia brigadeiro (1 euro), coxinha vegana (1,5 euro) e guaraná Antarctica (1 euro). Quem quisesse podia customizar as próprias camisetas usando moldes com a cara ou o nome de Lula pintados com spray. Como num daqueles churrascos de confraternização da firma — quando todo mundo tem o patrão em comum (nesse caso, excepcionalmente, todos gostam do patrão) e sabe que faz parte do ritual ter que se conhecer —, grupinhos se juntavam para puxar conversa. Adultos se abraçavam e posavam para fotos e selfies fazendo o L com os dedos da mão. Vez ou outra, um cor o brotava: "Olê, olê, olê, olá, Luláá, Luláá". E, como se estava em Portugal, algumas vezes era substituído por "Lulacáá, Lulacáá". | Imagem: Divulgação |
Sentado ao meu lado numa mesa comunitária, um jovem casal português encarava o coxão de galinha. Ele disse estar ali por ser membro da executiva da Juventude do Partido Comunista Português. Ela, informou, apenas o acompanhava. Havia pouquíssimos portugueses. A maioria era também de jovens ligados ao PCP. Aproximou-se um brasileiro de barba, camiseta estampada com a silhueta de Lula, e começou um monólogo num tom oitavas acima do normal. Apontando para o salgado, virou-se para a moça dizendo que na época de Lula "todo mundo comia isso no Brasil", mas que, agora, as pessoas "passam fome ou comem só a pele da galinha". Depois, numa retórica intrincada, tentou resumir as causas que levaram ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Concluiu o longo raciocínio dizendo que era "só porque era mulher!, mu-lher!". O casalzinho olhava com interesse, mas permanecia mudo. Ao final, vaticinou que Bolsonaro seria preso, que seus filhos seriam varridos da vida pública. Do nada, levantou-se, virou as costas e saiu. Vi bem quando ele se postou duas mesas à frente e recomeçou a cantilena. Coordenador do Núcleo do PT local, Pedro Luís Martins Prola, 33, é gaúcho e imigrou com a família para Portugal ainda quando era criança. Divide a militância política com o trabalho na área do Direito. Segundo ele, a festa havia sido pensada para o mês anterior e seria uma "Festa Lulina", mas não deu certo. Manifestações políticas de expatriados costumam ter seu impacto visto com reservas por críticos da causa em jogo. Em 2015, escrevi uma longa matéria para a revista piauí sobre os protestos da comunidade brasileira em Miami pela saída de Dilma do governo. A principal crítica dos adversários era que aquelas passeatas eram uma bobajada só, feita por gente alienada, cujo barulho era periférico e patético, até. Mas, sobretudo, porque significava, na prática, pregar para convertidos. Não se mudava a opinião de ninguém ou se conquistava um voto a mais com iniciativas desse tipo. Quis saber de Prola a que servia a festa. Se era algo para arrecadar dinheiro para a campanha, se para outras ações visando o pleito de outubro. Ele disse que, diferentemente dos "Fora, Bolsonaro", que já chegaram a reunir uma pequena multidão nas ruas de Lisboa no passado, a festa era mesmo "algo mais descontraído, para as pessoas trocarem impressões". Que o dinheiro arrecadado só pagava mesmo a bebida que fora comprada, mas que era importante para dar visibilidade ao braço local do partido, que batalha para atender às reivindicações dos patrícios instalados no país. Dos 200 mil imigrantes brasileiros registrados em Portugal, 80 mil estão cadastrados na Justiça Eleitoral, aptos a votar em outubro — é quase o dobro do registrado em 2018. Na eleição passada, apenas 20% dos registrados compareceram às urnas. "A abstenção é muito alta. Isso é algo que precisamos mudar porque os efeitos nós conhecemos bem", disse. Aqui, Bolsonaro venceu com mais de 50% dos votos. Só em Lisboa foram quase 57%. Entretanto, uma das questões mais relevantes para a comunidade, ele disse, é a ilegalidade. Estima-se que haja, de fato, cerca de 400 mil brasileiros vivendo em Portugal — o dobro do computado pelos dados oficiais. | Imagem: Divulgação |
Segundo Prola, há um compromisso da campanha do PT de que questões relativas à vida dos imigrantes terão prioridade em um eventual governo. "A principal questão diz respeito aos imigrantes não documentados, que são bastante explorados aqui. A população uberizada, que vem como turista, fica e tem que aceitar qualquer coisa para se manter aqui", disse. Não se sabe quem na festa se enquadrava no perfil. Um papelzinho passou a ser distribuído entre os presentes. Em setembro, o Partido Comunista Português comemora seu aniversário com a já tradicional Festa do Avante, uma das maiores celebrações da esquerda na Europa, que costuma reunir mais de 100 mil pessoas durante o final de semana. O flyer dava conta de que o PT Lisboa estaria presente na efeméride com o Bar do Lula, Lojinha do PT e a exposição "Lula Presidente". Haveria uma reunião na semana seguinte para que a militância ajudasse a preparar o evento. "Vamos lá, pessoal, não deixem de ir!", dizia a mulher vestida de vermelho. O volume da música aumentou. Uma moça alta que amamentava seu bebê, encostada em uma mesa de sinuca, franziu a testa, parecendo se incomodar com o barulho. Começou a tocar a música nova de Chico Buarque, que já foi carimbada como o hino da eleição de Lula: "De novo com a coluna ereta, que tal? / Juntar os cacos, ir à luta / Manter o rumo e a cadência / Desconjurar a ignorância, que tal?". Uma marolinha da turma do fumacê atravessou o ambiente. Uma mulher gritou: "A caipirinha chegou! Feita agora!". Instantaneamente, uma fila se formou novamente em frente ao bar. Nas três horas seguintes, o que aconteceu foi como um filme em looping: dancinhas, conversas, risadas, selfies, chopes, selfies. O calor continuava infernal mesmo com o cair da noite. Lá pelas 20h, no meio de uma música da Alcione, uma mulher cujas pontas dos cabelos eram azuis, e um homem magro de óculos redondinho e fita no cabelo começaram a se beijar sem parar de dançar junto. Ao lado deles, uma animada conviva, que usava vestido branco comprido, muitos colares e um turbante na cabeça, rebolava como se não houvesse amanhã. O sambão rolava solto quando uma voz perdida, abafada pelo som alto, tentava puxar um coro, em vão: "Lulalá, Lulalá?". Ninguém ouviu. PUBLICIDADE | | |