Há 46 anos, Myriam Taylor nasceu em Albufeira, sul de Portugal, filha de pais imigrados de Angola depois do fim da guerra colonial. É negra, tem olhos claros, abundantes cabelos afro e é rica. É ativista, empresária, produtora de TV e cofundadora da Muxima (que significa "coração" em kimbundu, uma das línguas angolanas) Bio BV — uma plataforma cujos temas são focados na representatividade negra, na feminina e na constante "luta para uma sociedade mais inclusiva e mais justa". Pode-se dizer que é uma das mulheres negras mais bem-sucedidas e conhecidas do país. Há algumas semanas, conversava com uma amiga — também negra — à porta da galeria de arte que mantém no bairro da Estrela, quando uma desconhecida branca passou pelas duas e, do nada, lascou dois tapinhas no rosto da sua interlocutora: "Qualquer dia ainda vamos ter um presidente da sua cor, hein?", disse a mulher, que seguiu, impávida, ladeira acima. Ambas ficaram em estado de choque. "Você tem noção do que é isso? Alguém que você nunca viu na vida te dá estalos na cara achando que está te agradando?", contou-me em tom enfuriado. Emendou a história elencando quantas vezes ainda é parada nas ruas de Lisboa por gente que quer tocar em seu cabelo ou pelas centenas de vezes em que teve que lidar com o olhar enviesado, o comentário passivo-agressivo, a observação travestida de elogio: "Você não é igual os outros negros!". Foi, portanto, com pouca surpresa que ela leu as notícias sobre os ataques racistas sofridos pelos filhos dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank e mais uma família angolana num resort metido a besta na Praia da Caparica, perto de Lisboa. "Portugal é um país tão racista como qualquer outro", disse Myriam Taylor. Ela acredita que o caso ganhou proporção por envolver uma figura pública e branca, por se tratar de uma celebridade e de uma mulher loira. "A questão é que Portugal ainda tem muita dificuldade em pedir desculpas, em olhar seu passado colonizador, escravagista, em ter um olhar crítico sobre si mesmo, em olhar adiante, parece sempre preso ao passado. E não há nada mais passado do que o racismo" Myriam Taylor, empresária e ativista portuguesa O assunto sumiu do noticiário em dois dias. Na tevê, a CNN, por exemplo, tratou o ocorrido no condicional: "teria acontecido", "teria xingado", "teria dito". Quem tem estômago forte e curiosidade mórbida pode espiar os comentários acerca das reportagens que saíram sobre o caso nas redes sociais da imprensa local. Só para se ter uma ideia, na página do jornal Expresso no Facebook, a maioria faz pouco caso ou levanta dúvidas sobre a veracidade do episódio. Dezenas de leitores postaram um emoji de risada para comentar a notícia. Entre os mais de 1.000 comentários, houve quem alegasse que as crianças eram mal-educadas, outros que ressaltassem o fato de ter havido tamanho barraco, "só poderia envolver brasileiros", que os atores estavam bêbados, que a polícia deveria se preocupar com coisa melhor. E muitos defenderam que a reação da atriz — que bateu e cuspiu no rosto da agressora dos filhos — é que deveria ter sido punida. "Ela se comportou como qualquer mãe-leoa. Eu faria igual. A ideia de culpar a mãe brasileira também não me surpreende", comentou a empresária. | Imagem: Reprodução/ Instagram |
Há uns 20 anos, Myriam protagonizou um dos episódios mais esdrúxulos de preconceito em Portugal. Foi presa depois de ela própria ter sido vítima de racismo. Jantava em um restaurante em Coimbra quando, disse, serviram-lhe "umas chamuças podres" (como são chamadas as samosas indianas por aqui). Foi reclamar com o dono, que verbalizou com alarde a petulância da cliente. "Só essa que faltava, uma preta vir se queixar!". Diante do insulto inadmissível, ela pediu o livro de reclamações da casa para registrar uma queixa. O homem, branco, começou a berrar e chamou a polícia. Quatro agentes a agarraram com força pelo braço, passaram a empurrá-la para fora do local e, como ela reagiu gritando que agissem de acordo com a legalidade, foi levada para a delegacia — onde passou a noite numa cela. No dia seguinte, prestou queixa, mas o proprietário do estabelecimento já o tinha feito. Disse ter sido xingado por ela de "seu branco de merda" e outras dezenas de impropérios, o que ela garante não ser verdade. Virou um processo judicial no qual foi processada à revelia, já que as autoridades afirmaram não tê-la encontrado para entregar a notificação para que apresentasse sua defesa. Quinze pessoas foram ao tribunal depor contra ela. No fim, foi condenada por desacato à autoridade. Nada aconteceu com o agressor. Para ela, a situação pouco mudou. Aliás, ficou pior, disse, depois de Donald Trump, de Jair Bolsonaro, de André Ventura (a versão portuguesa de ambos), cujo discurso, em sua opinião, legitima e autoriza manifestações de ódio. "Assim como vocês, brasileiros, já ouvi muitas vezes o 'Volta para a sua terra!', mesmo eu sendo portuguesa." No caso do episódio com os atores, dificilmente algo acontecerá. São raras as punições a portugueses que agrediram e discriminaram minorias étnicas e imigrantes. Nem mesmo a Anistia Internacional consegue afirmar quantas das denúncias que chegam à Justiça resultam efetivamente em condenações. "Espero que a atriz siga na luta e possamos contar com o apoio dela não só quando os filhos forem atingidos", comentou Myriam. De sua parte, ela diz, segue na lida. Um de seus projetos, que fez mover o pantanoso debate, foi o programa "Jantar Indiscreto", exibido durante seis semanas na RTP Play em 2021. Quatro desconhecidos se sentavam à mesa para conversar abertamente sobre temas como racismo, xenofobia, misoginia, homofobia e gordofobia, entre outros. Funcionava assim: no primeiro encontro, três deles discorriam sobre suas ideias preconcebidas a respeito de um tipo específico — um "cigano", por exemplo. E ouviam-se comentários sobre como "eles usam gel no cabelo", "eles não são muito confiáveis", "eles têm vocação para vender". Num segundo momento, durante um jantar, um cigano se juntava ao grupo, quando contava sobre sua vida, as questões com que tinha que lidar, o mal-estar diante da intolerância alheia — o que mexia com as ideias e o imaginário coletivo dos presentes. A cada conversa, ficava claro o incômodo e ignorância geral sobre o que seria "o diferente". No episódio sobre racismo, uma das convidadas a debater era a então ministra da Justiça, uma negra. Uma das convivas, que tinha várias "pré-ideias" sobre as pessoas negras, espantou-se ao saber que ela estava há seis anos no cargo. Nunca tinha reparado. O programa volta ao ar no segundo semestre. Alguns temas espinhosos já estão definidos para a nova temporada. Entre eles, pessoas com autismo e também as mulheres brasileiras em Portugal. PUBLICIDADE | | |