Eram quatro amigos inseparáveis no curso de engenharia da Universidade de Stanford. Todos estrangeiros vivendo nos Estados Unidos. Um deles, Raul, teve que voltar para a Nicarágua por conta de uma questão familiar. Fluente em inglês e superqualificado para a função, arrumou um emprego num call center, que atendia o mercado norte-americano. Não durou muito. Não porque não quisesse; foi demitido. Seu sotaque, ele contou aos amigos, dificultava a compreensão dos clientes, era alvo de insultos e preconceitos, tornou-se um problema para a empresa. Foi o que motivou os três outros universitários — um russo, um chinês e um venezuelano — a inventar um software de inteligência artificial que mudasse o sotaque das pessoas em tempo real com o objetivo, segundo disseram, de "melhorar a comunicação" entre falantes de línguas diferentes. Todos tinham histórias pessoais de discriminação pela maneira de falar inglês. A mãe de um não abria a boca em situações públicas por vergonha. Os pais do outro já tinham sido alvo de deboche num hotel. E havia o caso dos parentes que não conseguiam ser entendidos pela Alexa, a assistente virtual de voz da Amazon. Em 2021, criaram a Sanas.ai Inc. No site da empresa, a tecnologia é apresentada como "soluções sólidas para a próxima geração de comunicação empresarial". Ali, convidam à capacitação de "equipes em todo o mundo a se comunicarem com confiança em sua voz, não importa com quem estejam falando ou de onde estejam ligando", e afirmam que a ausência de sotaques pode melhorar a compreensão de uma conversa em "31% e a satisfação do cliente em 21%". Assim, um atendente de call center nas Filipinas, por exemplo, poderia soar como um nativo do Kansas para o cliente do outro lado da linha. (Em geral, os call centers já obrigam os atendentes a adotar nomes norte-americanos e forçar sotaques mais neutros para não melindrar os clientes, sobretudo nos Estados Unidos). A comunicação de um médico com um paciente que não falasse muito bem a língua também poderia ser facilitada. No final de junho, numa das principais rodadas de captação de investimento no Vale do Silício, a Sanas arrecadou 32 milhões de dólares — o que chamou a atenção não só pela vultosa soma, mas pelos princípios por trás da tecnologia. No site, é possível testemunhar "a magia" da Sanas, nas palavras da empresa. Ao apertar um botão de play, ouve-se uma conversa simulada entre um atendente com forte sotaque indiano, que faz perguntas sobre a satisfação do consumidor, como foi a entrega do produto, entre outras questões básicas. Clicando no simulador "Com Sanas", a voz muda imediatamente para um tom metálico, mais vagaroso, mas inconfundivelmente branco. Como se esse fosse o bom e ideal sotaque. O software para "branqueamento" da voz tem provocado um grande debate ético sobre a responsabilidade social dos tecnólogos. Um estudo da Universidade de Berkeley, feito pelo professor Tom McEnaney, revelou que os norte-americanos são fortemente condicionados, através dos meios de comunicação, a aceitar um tipo de voz como sendo a melhor, a definitiva: a do branco de classe média. Com um software feito para apagar sotaques, vem a pergunta: ele estaria combatendo ou perpetuando o preconceito? "Vários estudantes estavam preocupados com o fato de os fundadores da empresa estarem lucrando com o racismo e a discriminação em vez de estarem gastando seu tempo e energia tentando combatê-los", disse-me o cientista político Jeremy Weinstein, diretor do Laboratório de Impacto de Stanford, que leciona uma disciplina sobre ética, tecnologia e políticas públicas. Na quinta-feira (25), por e-mail, o venezuelano Andrés Pérez Soderi, um dos fundadores da empresa, respondeu a algumas questões sobre a nova tecnologia e as críticas de xenofobia. A conversa foi condensada e editada para melhor compreensão. Daniela Pinheiro: Os fundadores da Sanas são todos estrangeiros que vivem nos Estados Unidos, portanto falam todos com sotaque. Já foram discriminados por isso? Andrés Pérez Soderi: Sim, todos falamos com sotaque. Cada reunião da nossa empresa é muito interessante para aprimorarmos nossa tecnologia, porque aprendemos muito com o jeito de falar de cada um. Eu vim da Venezuela, toda a minha família tem sotaque latino. Na minha casa, na primeira vez que compramos uma Alexa [assistente de voz da Amazon], aconteceu uma coisa engraçada: estávamos tentando pedir para que ela ligasse a televisão da sala, mas o que ela fazia era acender uma luz cor-de-rosa no meu quarto! Certamente, era a questão do sotaque, mas também uma dura constatação sobre a maneira de falar, de organizar as palavras numa frase. E aquilo me parecia muito errado. Pessoalmente, sendo criado nos Estados Unidos, passei por situações ruins por conta do jeito que falava. Eu e todos os sócios, aliás. Muitas vezes, foram mal-entendidos, mas outras eram mesmo puro preconceito. | Os executivos da Sanas.ai Inc. | Imagem: Andrés Pérez Soderi/Arquivo pessoal |
A maior crítica ao software é que ele, no fundo, estimula a xenofobia, porque traz como solução o apagamento e padronização do sotaque, quando o que se busca é a tolerância ao diferente. Como responde a isso? Noventa por cento da empresa é composta por imigrantes, e todos já fomos discriminados devido aos nossos sotaques. Queremos melhorar a comunicação interpessoal. A ideia da Sanas nasceu para que empregados de empresas que tenham que lidar com o público, por exemplo, possam dizer aliviados que os dias de abuso ficaram para trás graças a nossa tecnologia -- quer seja num call center internacional ou entre equipes multinacionais que tentam colaborar num novo produto. Por exemplo, um CEO supercarismático, que tenha o inglês como segunda língua, pode se sentir mais confiante ao falar em conferências ou entrevistas na TV usando nossa tecnologia porque sabe que as diferenças de sotaque, de organização do discurso não vão comprometer sua comunicação. Outro exemplo: muitas vezes, por conta da ansiedade ou do nervosismo, equipes altamente qualificadas numa "call" com pares em outros países se enrolam com a língua, o que pode comprometer a parceria. A Sanas facilita a comunicação, tornando-a mais clara. O sotaque padrão apresentado no site da empresa como um bom exemplo é de um norte-americano padrão. Daí, as críticas sobre o "branqueamento" da voz para se dar melhor na vida, no emprego. É errado dizer que padronizamos os sotaques globais para o do meio-oeste norte-americano. Nosso algoritmo é de muitos para muitos, o que significa que pode fazer um sotaque mais regional também. Alguém do sul da Índia soar como alguém do norte da Índia, por exemplo. Ou um francês falando inglês soar como um espanhol falando inglês. É também importante notar que Sanas não vai só traduzir para o inglês dos EUA. Estamos desenvolvendo nosso algoritmo para que se traduza qualquer língua e sotaque. Para que uma avó italiana possa conversar com seus netos venezuelanos sem que os sotaques diferentes comprometam a conversa. É o que sempre aconteceu na minha família, minha avó com meus primos, por exemplo. Nosso ethos é: "sua voz, suas regras". E, até agora, só temos recebido feedbacks positivos de usuários mundo afora, cuja rotina têm sido muito facilitada depois disso. Foi uma surpresa captar 32 milhões de dólares em investimento? De fato, não. A maior parte de nossos investidores partilham a nossa missão e muitos têm sua própria própria história de discriminação pelo sotaque. Há planos para o sotaque português? Há uma crescente imigração de brasileiros para Portugal e o nosso sotaque é alvo de ataques xenófobos no país. Nosso objetivo é ampliar o serviço para todas as línguas. Embora a Sanas queira que os sotaques deixem de ser uma fonte de preconceito, não é esse nosso único objetivo na empresa. Queremos que as pessoas utilizem o serviço como quiserem, mas que ninguém abandone a maneira como fala. É a sua voz. Fale do jeito que você quiser. PUBLICIDADE | | |