A goiana Keylla Cristhianne da Silva diz que "rompeu um ciclo". A mãe foi empregada doméstica, a irmã também, ela idem, todas servindo aos mesmos patrões, que as tratavam como "da família", mas que era aquela coisa de "come o que sobra, dorme no quartinho dos fundos", contou-me numa tarde recente numa pastelaria próxima à nossa rua. Somos vizinhas. Em 2007, aos 26 anos, ela decidiu imigrar para Portugal. O Brasil, ela disse, parecia-lhe uma arapuca sem válvula de escape. Queria "quebrar o ciclo". Com 400 euros no bolso, desembarcou na terrinha com o endereço de uma amiga de infância, conhecida por ser uma cozinheira muito bem-sucedida em Vendas Novas, um povoado minúsculo no norte do país. Ela estava disposta a qualquer coisa: também sabia cozinhar, tinha tino para os negócios, gostava de cuidar de crianças e tinha um curso incompleto de enfermagem — o que acreditava ser uma vantagem para arrumar um emprego como acompanhante de idosos. Estranhou quando, sempre que entrava num café ou na vendinha da esquina, as senhoras e senhores de bem se levantavam, deixavam o recinto com cara de indignados, tinham sempre um olhar torto para as brasileiras. A colega explicou que os portugueses eram mesmo mal-humorados. Levou uns dias até descobrir que a amiga não era cozinheira coisa nenhuma, mas sim uma das "duas putas da cidade". "Aí eu entendi aquelas caras", disse. Como não estava praquilo, continuou morando de favor com a conterrânea, mas preferiu colher maçãs e peras, trabalhando 12 horas por dia em uma das fazendas da Compal, a marca de sucos mais famosa do país. Ganhava 30 euros por dia (a amiga faturava mais) e demorava três horas para ir e outras três para voltar de casa para a plantação. Isso fez com que os locais percebessem, segundo ela, "que ela não era igual às outras", o que lhe conferiu certo respeito entre os moradores. Subiu mais no conceito quando chegou o inverno e ela foi cortar eucaliptos numa floresta. Depois de seis meses, "só vendo vacas, cabritos e borregos", fez uma reflexão: "Gente, eu saio do Goiás para ficar enfurnada nesse meio de mato?". Com uma poupança fermentada, resolveu responder a um anúncio de jornal que buscava "uma acompanhante" em Lisboa. Quando entrou na sala cheia de mulheres maquiadas e alguns homens com roupa apertada, ela disse ter ficado surpresa por ter visto, pela primeira vez, uma pessoa negra em Portugal. "Era uma menina da Guiné-Bissau, que estava também esperando a entrevista." Uma senhora chamada Ruth a chamou. "És completa?", foi a primeira pergunta. Intrigada, Kelly olhou para o próprio corpo e respondeu sem titubear: "Sim, não está faltando nada". Pensou ser uma indagação legítima em se tratando da lida com pessoas de idade, o que requer força e paciência. A mulher riu. "Quero saber se vais ao cu, se fazes anal." Foi então que percebeu, com atraso, mais uma vez, do que se tratava o emprego. Acompanhante, sim, mas não de velhinhos — como imaginara. Lembrou-se do relato da amiga bem-sucedida. Não era tão mal assim e se ganhava bem. Resolveu tentar. A cafetina falou que seu nome era impronunciável e, dali em diante, ela se chamaria Joana. Teria alojamento de graça, poderia escolher quantos programas faria, contaria com a segurança do esquema. No primeiro dia, em lingerie, foi fazer uma dancinha para um velho, e a peruca que lhe puseram caiu no chão. "Fui um fracasso completo", falou. Três dias depois e colecionando histórias risíveis, a própria gerente sugeriu que ela fosse trabalhar na cozinha de um clube de strip que tinha fama de ser "gourmet". Deu certo. Guardava dinheiro, acostumava-se com o país, com a distância da família, percebia que o "ciclo estava se rompendo". No entanto, ainda estava ilegal. "Aí, comprei meu casamento por 3.000 euros", contou. Casou-se de papel passado com o açoriano Sebastião, que conheceu "no puteiro da Dona Ruth" ("Ele estava tentando ser prostituto", explicou). Em meados de 2008, conseguiu um visto de residência válido por cinco anos. A vida seguia seu rumo, Sebastião decidira voltar para a ilha com um namorado novo, ela construía uma rotina, mas a conta havia chegado. A solidão, a imigração, as situações esdrúxulas pelas quais havia passado resultaram numa depressão profunda. Em dois meses, emagreceu 25 quilos. No meio da crise, numa noite que havia resolvido sair, conheceu Miguel, um português de meia-idade, solteiro, "engenheiro informático" do banco BNP Paribas. Começaram a sair. Pouco depois, ela se mudou para a casa dele. Ficaram juntos por quase cinco anos. Na primeira vez que a mãe dele a viu, não escondeu o fastio: "O que meu filho está fazendo com uma preta brasileira?". Até então, ela disse, jamais tinha passado por qualquer situação discriminatória em Portugal. "E olha que a fama das brasileiras já não era lá essas coisas", comentou. No começo dos anos 2000, uma reportagem da revista Time contava que a cidade de Bragança havia recebido repentinamente cerca de 300 prostitutas brasileiras que estavam chacoalhando a pasmaceira das ruas e os casamentos locais. Em reação, um grupo de mulheres portuguesas se organizou para expulsá-las, o que ficou conhecido como o movimento das "Mães de Bragança". Pouco tempo depois, um outro caso — digno de série da Netflix — azedou ainda mais o ambiente. Dois jovens brasileiros protagonizaram uma das mais midiáticas tentativas de roubo a banco de que se tem notícia até hoje no país. O assalto a uma agência do Banco Espírito Santo no centro da capital teve reféns, morte de um dos criminosos, rendição de outro, tudo inédito para os espectadores locais. "Havia uma coisa no ar, mas não era xenofobia, era um choque sobre aqueles novos tipos de brasileiros que tinham se instalado por aqui", disse. O namorado português a ajudou financeiramente a montar um restaurante em Setúbal. Ali, ela confirma, também nunca teve problemas por ser estrangeira. Quando Miguel conheceu outra brasileira pela internet, ela resolveu ir de férias para o Brasil. Os planejados 30 dias junto à família viraram quatro anos. "Eu precisei desse tempo para me pôr de volta no lugar", afirmou. Corria 2011 e houve uma onda de imigração — dessa vez, reversa. Os brasileiros tomavam o rumo de volta à terra natal. "O Brasil tinha melhorado, havia uma perspectiva, Portugal estava em crise", comentou. Ela disse se lembrar dos comentários sobre os novos imigrantes — indianos, bengaleses, africanos — que vieram ocupar o vazio deixado pelos brasileiros em empregos na restauração ou na construção civil. "Não há comparação com o racismo e xenofobia sofridos por eles", comentou. Em 2016, novamente com 400 euros no bolso, resolveu voltar para a Europa. "Depois que você vê um outro jeito de vida, de educação, de respeito ao espaço do outro, de convívio em sociedade — sem medo, sem ser escrava de boleto, com segurança —, não tem como ficar mais." Para ela, o Brasil e os brasileiros "não têm jeito". Nessa altura, ela disse, o clima em relação aos brasileiros tinha mudado um pouco. Outro episódio, com larga repercussão na imprensa, havia manchado novamente a reputação dos patrícios. O caso ficou conhecido como o esquema das "máfias da noite". Policiais portugueses se juntavam a empresas brasileiras ilegais de segurança para extorquir donos de bares, restaurantes e boates em zonas turísticas do país. "Dessa vez, havia muita gente competindo por subempregos, e o estranhamento tinha piorado", afirmou. Passou a trabalhar num salão de beleza, cuja clientela era composta de brasileiras recém-chegadas ao país. Elas eram diferentes. "Eram ricas, metidas, arrogantes, achavam que com dinheiro se compra tudo e que aqui somos todas empregadas delas", disse. Contou um episódio envolvendo uma dondoca paulistana, que trabalhava na organização de festas e bodas para abastados portugueses, ocorrido em um salão em Campo de Ourique, onde moramos. A perua já chegou de nariz em pé escrutinando o ambiente com expressão nauseada. Sentou-se à frente dela e sem a cumprimentar passou a dar as instruções de como queria suas unhas. Não demorou muito, começou o queixume. Disse que a unha lixada havia ficado pontuda, depois que havia uma pelinha sobrando, depois que a cor do esmalte não estava certa, depois que ela apertava muito seus dedos. E dizia "ai, ai" a cada minuto. A manicure pediu para que ela se levantasse e fosse embora. A mulher ficou em choque e disse que ia falar com a "patroa". "Minha senhora, a minha patroa sou eu. Por favor, levante-se e saia." Foi o que aconteceu. A convivência com os "novos brasileiros" tem lhe ensinado algumas coisas. A mais pungente constatação, ela disse, é perceber que o verdadeiro preconceito é do brasileiro rico com o brasileiro pobre, igualzinho se dá no Brasil. "Esse rico chega aqui se comportando como faz lá. Isso incomoda muito os portugueses." Segundo ela, quando se é convidado para a casa de alguém, você não age como na sua casa. Você se adapta aos modos da casa do convidado. "Mas brasileiro não quer fazer isso, não." Depois, sugeriu que eu reparasse nos nossos compatriotas em restaurantes. "É tudo falando alto, gritando, chamando o garçom no estalo de dedos. Ninguém faz isso aqui", comentou. E aí, ela disse, ao contrário do portugueses, dão gorjeta alta e acham que está tudo resolvido. Recentemente, passou por uma segunda situação que ela atribui, de novo, mais à falta de educação do que racismo. Foi a um café no shopping Amoreiras, um dos mais conhecidos de Lisboa, e pediu um "queque (um bolinho) com manteiga". A dona do estabelecimento — uma portuguesa — disse que não entendia o que ela dizia, que ninguém comia aquilo em Portugal, que vinha "essa gente de fora com pedidos disparatados", que não tinha nem sequer como registrar o que ela queria. Kelly pediu o livro de reclamações para formalizar uma queixa (em Portugal, é fiscalizado pelas autoridades) e a mulher chamou um segurança alegando que a cliente a tinha desrespeitado (por lei, ela é obrigada a dar o livro). O homem deu razão à cliente. "Tem xenofobia? Tem. Tem racismo? Tem. Mas, na maioria dos casos, é só falta de educação mesmo. Há gente grosseira em todo canto do mundo." Nos últimos tempos, Kelly disse estar surpresa com a cobertura jornalística feita pelos correspondentes brasileiros em Portugal. Acha que a tecla da xenofobia é apertada com mais frequência do que ocorre na realidade porque "dá leitura". "É menos xenofobia e mais grosseria, mesmo. Quem faz isso é grosseiro por natureza e com qualquer nacionalidade." Ela acha que se devem evitar generalizações. "Toda brasileira é puta? Todo português é burro? Óbvio que não. Essa coisa de falar que a xenofobia aqui está em cada esquina não corresponde à verdade. São episódios isolados", disse. Em sua opinião, o jeito fechado do português — meio casmurro, meio desabrido — mascara a boa índole. "O português demora para abrir a porta para você. É desconfiado, tem um jeito que pode parecer meio grosso, mas depois que você conquista a confiança, não existe povo mais fiel na amizade", disse. Ela e a dona do salão costumam frequentar a casa de alguns clientes abonados nos finais de semana ou em dias festivos. Um deles é a família Fonseca, herdeira da vinícola Periquita. "Uns milionários desses? acha que são xenófobos?". Kelly aguarda a aprovação de seu processo de cidadania portuguesa, que já está nos finalmentes. Não vai votar em outubro. Entre Bolsonaro e Lula, prefere o primeiro. "Prefiro ele calado. Se abre a boca é um desastre, mas está fazendo bem para o Brasil. Já o Lula não precisa nem abrir, já está escrito na cara dele: mentiroso. Eu nunca vi ninguém mentir tanto na vida." Disse que está "louca" por Ciro Gomes. "Lula é o que ele diz: um encantador de serpentes!". Por conta dela, duas sobrinhas vieram morar em Portugal, fizeram faculdade — uma se casou, "romperam o ciclo". Ela disse que nunca mais volta para o Brasil. PUBLICIDADE | | |