Muito tem se falado sobre a imprecisão das pesquisas eleitorais, mas é impossível passar incólume ao que brota delas nas semanas que antecedem uma das eleições mais polarizadas da história do país. De acordo com o último Datafolha, Lula segue à frente de Bolsonaro, apesar de empate técnico no limite da margem de erro. O petista tem 52% dos votos válidos contra 48% do atual presidente. No primeiro turno, a diferença entre os dois foi de apenas cinco pontos percentuais — a menor já registrada a essa altura numa disputa nas urnas. A campanha petista reagiu. Como estão repetindo alguns analistas políticos, "com o mesmo modus operandi" dos bolsonaristas. Amplificou-se a agressividade entre os adversários, e a mixórdia grotesca publicada nas redes sociais chegou aos programas eleitorais dos dois candidatos no rádio e na TV. Canibalismo, satanismo, pedofilia — para não esquecermos. E ainda falta mais de uma semana para o segundo turno. Na quarta-feira (19), conversei com Alexander Stille, professor da Escola de Jornalismo da Universidade Columbia, em Nova York — autor de vários livros sobre história e política, além de arguto pesquisador sobre a ascensão da onda conservadora na Europa —, sobre por que o centro e a esquerda não estão conseguindo manter a extrema-direita fora do poder, o que move populistas como Bolsonaro e Lula, os riscos da agenda de costumes na política e mais. A conversa foi condensada e editada para melhor compreensão. Daniela Pinheiro: Por que a esquerda e o centro não conseguem impedir a extrema-direita de chegar ao poder? Alexander Stille: O economista Thomas Piketty mostrou que houve uma mudança no nível educacional nos partidos de centro e esquerda no mundo. Há 40 anos, eles representavam trabalhadores, gente sem ensino superior, com baixa escolaridade. Hoje, é o contrário. A elite intelectual e urbana está na esquerda. É assim na Itália, na França, nos Estados Unidos, onde os democratas são liberais brancos e também as minorias -- negros e latinos. De certa maneira, a esquerda absorveu premissas neoliberais e se afastou dos problemas de quem representava originalmente. Seja enfrentando questões sociais com soluções de mercado ou mesmo a própria globalização, que é algo que pune os trabalhadores e premia a elite urbana -- onde está a esquerda hoje. Se para essa elite a globalização significa viagens aéreas mais acessíveis, oportunidades de emprego em todo mundo, produtos baratos feitos na China, entrega grátis da Amazon, para os trabalhadores é outra coisa: salários baixos, menos vagas de trabalho, desindustrialização. Acho que a esquerda não prestou atenção no custo da globalização para os trabalhadores, que ficaram desamparados. E aí a classe branca trabalhadora americana, por exemplo, virou republicana. O discurso político também mudou? AS: Sim, e acho que isso se aplica especialmente ao Brasil. A política deixou de ser baseada em questões de classe e virou sobre identidade, etnia, raça, religião. Há um apelo muito grande da direita nessas questões antiaborto, contra casamento gay. A política é hoje mais sobre valores e costumes do que classe. No caso da campanha no Brasil, Lula está fazendo o discurso clássico de classe da esquerda do passado: que a vida vai melhorar, os programas sociais vão ajudar os mais pobres e por aí vai. Já Bolsonaro faz o apelo diferente, o discurso da identidade, dos valores, dos costumes -- base do que elegeu populistas como Giorgia Meloni, recentemente na Itália. Alexander Stille, professor da Escola de Jornalismo da Universidade Columbia (EUA) Quais os riscos disso? AS: Esse discurso tem um aspecto de exclusão, de fratura da sociedade, incontrolável. É como se fosse "ou você é parte da minha tribo ou não é. E se você não é, você deve ser 'do mal'". Veja que a mulher de Bolsonaro até já disse que o palácio do governo estava "possuído" por forças do mal antes de eles chegarem lá. O discurso populista joga muito forte com a ideia de se estar ao lado de Deus, de ser puro, de ser um brasileiro de bem, um italiano de bem, um americano de bem. E o maior risco disso é que, se você representa a "causa do bem", do "certo", o mundo da democracia, do Estado de Direito, tudo isso passa a ser secundário -- até irrelevante -- porque a verdade está com você. Se você acredita que é a luta do bem contra o mal, de Deus contra o diabo, tudo se justifica, inclusive qualquer tendência autoritária. Quando Bolsonaro enaltece a ditadura, por exemplo, porque ele acha também que naquela época os valores de Deus eram mais respeitados, a democracia passa a ser vista como um grande desordem. E se tem uma boa desculpa para "botar a casa em ordem". Na campanha eleitoral no Brasil hoje se fala de pedofilia, satanismo e até canibalismo envolvendo os candidatos. AS: Como eu disse, essa ideia do bem contra o mal pregada pela extrema-direita é uma narrativa muito forte. Essa ideia de apocalipse e enfrentamento do mal foi muito usada por Trump, pelo QAnon -- grupo de extrema-direita que espalha mentiras e teorias da conspiração -- aqui nos Estados Unidos. É uma narrativa muito forte, que mobiliza muito as pessoas. E, voltando à pergunta sobre o problema da esquerda, a esquerda não tem uma narrativa forte assim para os eleitores. Pode não ser bem o caso do Brasil -- Lula promete a volta dos dias bons do passado, as pessoas têm uma memória do que foi o governo dele, acho que ele vai ganhar --, mas é o caso na Itália. Ali, a esquerda estava apenas lidando com uma economia meia-boca sem prometer muita coisa. Falava em baixar um pouco a inflação, mas isso não é coisa que toca o coração das pessoas. É muito diferente de "América em primeiro lugar", como prometia Trump, ou "Itália para os italianos", lema da Meloni, ou discursos contra imigrantes que tiram o emprego dos cidadãos de bem. Isso deixa os eleitores muito excitados. Por que a esquerda parece não sabe reagir aos ataques da extrema-direita? AS: Não sou consultor político, mas eu acho que, no contexto americano, por exemplo, você tem que dar às pessoas ideais para acreditar. As pessoas costumam votar ou por medo ou por esperança. Bolsonaro joga com o medo. Não há porque Lula fazer o mesmo. Deveria ser algo mais óbvio, mas não é. Deveria bastar falar para as pessoas que, se elas querem viver na democracia, elas não podem votar nos republicanos porque eles apoiam atos e tem uma agenda antidemocrática. Não é igual em todo mundo, mas no Brasil o que está em jogo é a existência da democracia ou não. Você escreveu muito sobre política e religião, sobretudo sobre a Igreja Católica. Os evangélicos estão definindo essa eleição no Brasil. AS: O que acontece no Brasil é parecido com o caso americano. As igrejas evangélicas são muito empreendedoras e são geridas como negócios -- não têm uma autoridade máxima em Roma pagando as contas. Por isso, elas têm que ser muito agressivas ao buscar e manter seu rebanho. Diferente da Católica, que parece acomodada, o padre está velho, eles estão no monopólio há séculos, é como se não se esforçassem e aí são ultrapassados pelos "empreendedores" da fé. Outra coisa é que os evangélicos conseguem entrar em alguns rincões onde não está o Estado, dando assistência, estrutura -- e isso fideliza as pessoas. Também não têm qualquer pudor em apoiar políticos -- o que a Católica sempre evitou. Portanto, por se meter na política, a influência e o poder político dos evangélicos aumentaram. E estão muito representados no Brasil. Durante a campanha eleitoral, uma das ideias repetidas por Giorgia Meloni, que é representante máxima da extrema-direita e foi eleita primeira-ministra da Itália, era a "extinção dos heterossexuais" devido às progressivas políticas de gênero. As pessoas realmente acreditam nisso? AS: Não acho que as pessoas acreditem nisso. Ela mobilizou o eleitorado com uma visão católica tradicional sobre família e gênero. Ser contra a adoção de crianças por casais gays, contra a barriga de aluguel. Na Itália, o aborto é legal, mas o médico pode se recusar a fazê-lo. E, em média, 70% deles se recusam. As farmácias também têm o direito de não vender pílula do dia seguinte. Então, ainda há muitas maneiras com as quais a Igreja Católica controla os costumes no país. E Meloni veio representando isso. A esquerda italiana relutava muito em criticá-la por temer que parte do seu eleitorado ia se incomodar. E fez uma oposição pífia. Em que acreditam de verdade populistas de extrema-direita como Meloni ou Bolsonaro? AS: Todo político se importa com poder. Muitos confundem o próprio poder com o bem-estar do país. Acho que Bolsonaro se acha o líder certo para combater a esquerda, levar o país de volta a uma hierarquia com autoridade clara, valores tradicionais, e que isso é o certo para o Brasil. É a visão de Trump. Era a de Silvio Berlusconi, que dizia que o que a Itália precisava era "de mais berlusconis". Ainda é cedo para avaliar Meloni, mas é essa a ideia. O culto da personalidade não é privilégio da extrema-direita. AS: Não é. Uma das forças de Lula é ser um populista, um populista de esquerda. E o culto da personalidade é uma das características do populismo. Um dos problemas da esquerda, em países como Itália ou Estados Unidos, é não ter esse tipo de figura. Bernie Sanders quase foi. Alexandria Ocasio-Cortez tenta. Mas nada chega aos pés de Lula. Qual o problema de ter populistas no poder? AS: O problema é quando o herói populista se acha maior do que as leis e a democracia. Quando Bolsonaro fala que não vai respeitar o resultado da eleições ou quando lembra dos dias bons da ditadura ou quando diz que prefere um filho morto do que gay, isso deveria assustar as pessoas. Não acho que o populista Lula seja um risco. As pessoas sabem o que ele é, sabem como governou, sabe que respeita as leis. Nunca fez nada que tivesse apontado em outra direção. Há uma grande diferença entre esses discursos. A política tende a ser isso a partir de agora? AS: O maior desafio quando penso em Trumps e Bolsonaros da vida é o debate sobre até que ponto a realidade ainda importa. Eu gostaria de continuar pensando que a realidade importa. E que o fato de um político ser incompetente seria mais do que razão para não elegê-lo. Mas não é mais simples assim. Quando Trump diz que ele poderia matar alguém no meio da Quinta Avenida e seus eleitores ainda votariam nele, isso é algo completamente fora da realidade. Estamos num período estranho, tudo de cabeça para baixo. Acho que vamos aprender a viver melhor com isso e não ser apenas vítimas de desinformação e mentiras, mas ainda leva um tempo. PUBLICIDADE | | |