Durante muitos anos, quase todos desde que a F-1 nasceu, em 1950, a presença de mulheres nos autódromos foi associada à beleza e sensualidade das "grid girls", que se postavam com placas no asfalto indicando a posição de cada piloto para a largada de um GP. Em 2018, a nova administração da categoria, a cargo da Liberty Media, baniu a exibição das meninas em suas corridas, ainda que o banimento tenha sido driblado algumas vezes desde então, como em Mônaco e na Rússia. Mas, para todos os efeitos, não tem mais "grid girls" na F-1. A justificativa, na época, foi colocar um fim à exposição das mulheres como objetos diante de um público, nas arquibancadas e nas TVs pelo mundo todo, majoritariamente masculino. Houve reação, na época. Dos ogros onanistas de sempre e, também, de muitas meninas, modelos profissionais, que protestaram contra o fechamento de mais uma frente de trabalho. Neste domingo, as mulheres voltaram a ser notícia na F-1. O dia começava na Áustria e muitas postagem em redes sociais com hashtags vinculadas ao GP reportavam uma situação de horror: mulheres sendo assediadas, agredidas, ofendidas e abusadas por homens nas arquibancadas e nas áreas comuns do autódromo. Uma delas, torcedora de Lewis Hamilton e da Mercedes, foi cercada por fãs de Max Verstappen aparentemente embriagados e teve seu vestido levantado por alguns deles, enquanto outros gritavam que ela "não merecia" estar ali. Foram muitos relatos. Que se multiplicaram e passaram a narrar, também, episódios de racismo, homofobia e misoginia. Antes mesmo da largada, a F-1, de forma institucional, se manifestou com um comunicado oficial chamando tais comportamentos de "inaceitáveis" e garantindo que não seriam mais "tolerados". Não levou o assunto adiante, porém. Nada foi dito sobre o que será feito para que essas coisas não se repitam. Quando soube do que acontecia nas tribunas do Red Bull Ring, Lewis Hamilton publicou um texto nos stories do Instagram se dizendo "enojado" com as demonstrações de racismo e homofobia por parte do público. "Ir ao GP da Áustria ou a qualquer outro GP nunca pode ser motivo de medo e dor para torcedores, e alguma coisa tem de ser feita para garantir que as corridas sejam seguras para todos", disse o heptacampeão mundial. Não foi o único. "Sempre haverá idiotas por aí, mas isso precisa parar", falou seu chefe na Mercedes, Toto Wolff — que é austríaco. "Se você é fã de F-1 e é racista, sexista, machista, homofóbico, você não se encaixa ao nosso ambiente e não queremos você aqui." A equipe foi buscar a torcedora vítima dos fãs do holandês para conhecer os boxes e o trabalho do time de perto. Outras foram levadas ao paddock depois da corrida para se encontrarem com alguns pilotos. "Vamos ver se a gente consegue dar a elas um pouco de amor depois do que passaram. A F-1 precisa bater forte nesses caras", falou Daniel Ricciardo, da McLaren. "Essa gente tem de ser banida de vez daqui. Tolerância zero com quem se comporta assim. Isso não é aceitável, ponto", acrescentou Sebastian Vettel, da Aston Martin. E isso acontece há séculos. Quem frequenta o autódromo de Interlagos em GPs do Brasil, sobretudo nos setores G e A, sabe muito bem do que estou falando. O comportamento dos torcedores que tomam essas arquibancadas de assalto, desde sempre, é medieval. Mulheres não podem ir à corrida sozinhas. Correm o risco de serem estupradas à luz do dia na frente de todo mundo — sim, porque estupro não é apenas um ataque num beco escuro à noite, e espero que todo mundo já saiba disso. Mesmo quando acompanhadas, em tese "protegidas", são ofendidas e chamadas de tudo que se pode imaginar por grupos de homens que se julgam proprietários daquele pedaço do mundo e do direito de expor sua selvageria impunemente. Se alguém reage — elas mesmas, ou quem as estiver acompanhando —, corre o risco de apanhar e/ou ser expulso do lugar que escolheu para ver a prova. | Grid girl em Interlagos: vítimas de hordas de selvagens | Imagem: Divulgação/GP Brasil |
Na pista, quando as meninas patrocinadas se postavam no grid com suas placas indicativas junto aos colchetes onde os carros seriam posicionados para a largada, hordas com centenas de machos babões se aglomeravam junto ao alambrado urrando, salivando e gritando aquilo que vocês podem supor — desnecessário reproduzir aqui. Seria fácil e confortável encerrar este texto com um parágrafo começando com "Passou da hora de blábláblá..." e, aí, conclamar FIA, Liberty, organizadores de GPs e autoridades em geral a fazerem alguma coisa — campanhas nos autódromos, nas redes sociais, fiscalização dura, punição, o que for. E, depois, ir dormir satisfeito com a demonstração inequívoca de minha defesa das mulheres apoiado num discurso, de quebra, de solidariedade irrestrita às vítimas de todo tipo de abuso. Mas não. Não é o bastante. E para me fazer entender, vou recorrer, sim, ao "passou da hora de...". Talvez facilite a compreensão de quem insiste em achar que estamos exagerando, que as coisas não são bem assim, que esse negócio de politicamente correto é um saco, que o mundo está muito chato. Passou da hora de não se calar quando alguém se comporta dessa maneira do seu lado. Onde for. Numa corrida, num jogo de futebol, num bar, numa festa, num bloco de carnaval, num vagão de metrô. Passou da hora de levantar a voz para defender quem se sente indefeso. Passou da hora de exigir que os agressores se desculpem e paguem pelo que fizeram. Passou da hora de deixar claro de que lado você está. E, por fim, passou da hora de nós, homens, deixarmos de ser uns babacas escrotos que acham que podem tudo. PUBLICIDADE | | |