Minha ideia de Europa era: a gente chega em qualquer lugar, pega um trem e em duas ou três horas está onde quiser. Tinha 24 anos e só havia saído do Brasil uma vez, numa viagem de carro que fizemos em 1976 ou 1977 até a Argentina. Auge da ditadura militar — aqui e lá —, preparativos para a Copa de 1978, e na volta um encontro inesperado no aeroporto de Ezeiza: Carlos Reutemann embarcando para disputar o GP do Brasil dali a alguns dias em Interlagos. Meu pai fez questão que eu e meu irmão tirássemos uma foto com o Lole. Fiquei bravo, não queria. Na "Folha", ainda não tínhamos um esquema muito definido de cobertura de Fórmula 1. Enquanto nossos concorrentes mantinham correspondentes vivendo no exterior exclusivamente para cobrir o campeonato, seguíamos em ritmo errático. Quando a corrida acontecia em algum país onde o jornal tinha alguém fixo, o sujeito ia. Jair Rattner, por exemplo, era nosso homem em Portugal. Estoril era com ele. Silverstone, com o correspondente de Londres. Suzuka, com quem estivesse em Tóquio. Mas naquele começo de julho de 1989 eu ia entrar de férias, e tinha finalmente conseguido comprar uma passagem para a Europa. Realizaria o sonho, e no caso era sonho mesmo, de ficar um mês viajando por todos os países possíveis. Thais, então minha namorada, ia junto. A passagem pela Lan Chile custou US$ 650 e nos deixaria em Madri. Foi a mais barata que conseguimos, numa promoção de retomada da rota Santiago-Madri pela companhia chilena, com escala em São Paulo. Saímos sem roteiro definido, mas com duas obrigações. A primeira, cobrir o GP da França em Paul Ricard — já que o jornal topou minha sugestão de fazer aquela corrida e me deu uma grana para as despesas naquele fim de semana. A segunda, visitar um amigo em Alkmaar, na Holanda, chamado Martin Roberto Dom - um cara que eu conhecera através da seção de cartas da revista francesa "Onze", apaixonado pelo Brasil e pelo futebol brasileiro, que ficou um tempo na minha casa em São Paulo anos, depois pegou um ônibus para Belém, conheceu uma linda paraense e se casou com ela. Quando fui procurar Paul Ricard num atlas na Redação do jornal não encontrei. Foi a primeira providência que tomei para aquela viagem, porque a ideia era desembarcar em Madri e pegar um trem para a cidade onde ficava o autódromo. Afinal, em duas ou três horas a gente atravessa a Europa, era o que todos diziam. Só que Paul Ricard nunca foi uma cidade. Era o nome do criador da bebida mais vendida da França, o pastis Ricard, um licor de anis, alcaçuz e ervas que fica muito gostoso com bastante gelo. Paul Louis Marius Ricard foi quem financiou a construção do circuito em Le Castellet, pequena cidade perto de Marselha, onde nasceu. Seu envolvimento com o esporte era antigo. Foi o primeiro patrocinador do Tour de France, em 1948 — a prova ciclística mais importante do mundo. O vexame de não saber nem o nome da cidade onde seria realizada a corrida não se tornou público. Quando descobri onde ficava Le Castellet, imediatamente tracei planos e rota. Chegaríamos em Madri, procuraríamos a estação de trem e tomaríamos o primeiro que desse para Marselha. São duas grandes cidades, deve ter trem direto. A Europa não tem fronteiras. Era o que diziam. Essa absoluta ignorância de como as coisas funcionavam na Europa se devia a dois fatores. Primeiro, desconhecimento, mesmo. Nunca tinha ido. Segundo, um pouco de vergonha de perguntar as coisas ao pessoal mais velho e culto do jornal. Na "Folha", todo mundo parecia cosmopolita, viajado e poliglota. Os acontecimentos de Londres, Paris, Nova York, Milão e Berlim eram assuntos recorrentes nas reuniões de pauta e edição de que participava, e todos falavam com enorme desenvoltura desses lugares. O editor de Exterior comentava sobre algo que tinha acontecido na capital inglesa, e o secretário de redação perguntava: "Mas foi perto de Trafalgar Square ou do outro lado?". O cara da Ilustrada mostrava a foto de uma celebridade qualquer em Manhattan, e o colega de Turismo rebatia, corrigindo a legenda: "Mas isso aí não é no Soho não, é Upper East Side". Pegamos o voo da Lan Chile em Guarulhos numa quinta-feira pela manhã, vôo diurno, e lembro até a roupa que estava usando para aquela primeira travessia do Atlântico: uma blusa de malha cor-de-vinho, calça jeans clara e tênis All Star preto de cano alto. Nem precisei ver fotos antigas para lembrar. Aquilo me marcou de alguma forma porque foi pensado para a ocasião: imaginava que era uma espécie de figurino universal para passar despercebido em qualquer país do mundo e sempre tive horror de parecer turista. Queria chegar em Madri, entrar no trem para Marselha e me misturar à multidão que rasgava o continente no verão europeu sem parecer o que era: um capiau deslumbrado com tudo. Para essa viagem, compráramos um troço chamado Eurail Pass, que existe até hoje, creio. Era um passe de trem para jovens até 25 anos que valia em todos os países para qualquer trajeto, uma forma muito econômica de rodar a Europa de cabo a rabo sem se preocupar em pagar passagens. Só não podia ser usado na Grã-Bretanha, mas no resto seria uma festa. Claro que a gente não sabia que as coisas não eram tão fáceis assim. Era preciso ter lugar no trem. Ninguém te jogava para fora do vagão com aquele passe, é verdade. Bastava apresentar ao moço ou à moça que controla as passagens que sua situação estava, por assim dizer, regularizada. Mas se não tivesse assento disponível, era preciso viajar de pé, quando deixavam, ou ficar circulando pelos corredores para lá e para cá fingindo que estava indo ao banheiro ou ao vagão-restaurante. Desembarcamos em Madri no dia 7 de julho moídos pela viagem no 767 novinho e lotado, e assim que nos vimos no saguão de Barajas procuramos um balcão de informações para fazer a singela pergunta: onde pegamos um trem para Marselha? A resposta foi: peguem um ônibus até a estação Atocha e de lá sai trem para todo lugar. Gracias, respondi, e fomos atrás do ônibus até Atocha. Até ali corria tudo bem. Era uma sexta-feira de tarde, dizem que aqui no verão o sol se põe depois das dez da noite, devemos chegar a Marselha de noite, arrumamos um hotel e amanhã estamos na pista para o segundo treino oficial. Sossegado. As coisas começaram a se complicar quando percebi que Marselha não era logo ali, a quatro ou cinco horas de trem "no máximo", como todo mundo falava que eram as viagens pela Europa. A distância entre as cidades é de mais de mil quilômetros e naquele tempo não tinha trem-bala para todo canto, como hoje. O TGV francês era o mais conhecido e fazia apenas algumas rotas. Na Espanha, não havia. O tempo de viagem estimado: 14 horas. Nossa primeira refeição em solo europeu foi um sanduíche de jamón serrano numa baguete, cujas fatias impressionavam pela espessura; eram quase translúcidas. Foi o que deu para comprar com as poucas pesetas que trocamos por dólares no aeroporto em nossa primeira operação de câmbio que acabaria se tornando uma paranoia ao longo da viagem. Cada país tinha sua moeda e o euro ainda era um projeto distante da União Europeia. Pesetas na Espanha, francos na França, marcos na Alemanha, liras na Itália, florins na Holanda, libras na Inglaterra, e franco belga, e franco suíço, um inferno, e sempre atrás da melhor taxa, calculadora na mão, a sensação permanente de estar sendo passado para trás nas trocas em estações de trem ou agências nas ruas. No trem, nos acomodamos em poltronas aleatórias, que ao longo do trajeto, a cada parada, foram sendo ocupadas por passageiros que haviam reservado aqueles lugares. Senta, levanta, senta, levanta. O sanduíche, que dividimos, foi salvo da escassez de presunto por um improvável salame que a mãe da Thais colocou na sua mochila, e que nos acompanharia por boa parte daquelas semanas. Chegaríamos quase de manhã a Marselha, mas não havia o que fazer. Não conseguiríamos dormir, a não ser no trem, e assim que chegássemos a Marselha teríamos de arrumar um lugar para deixar as malas e encontrar uma forma de ir até o autódromo. Eu não tinha a mais remota ideia de como faríamos isso. Na medida em que o trem avançava para o leste, o cansaço foi nos derrubando e depois de Zaragoza, já noite fechada, capotamos. Pela altura de Girona, o trem já mais vazio, conseguimos nos acomodar numa daquelas cabines para seis passageiros, só nós dois, e deitamos em cima das malas e mochilas. Foi por pouco tempo. Na divisa com a França, em Cerbère, o trem parou e tivemos de mostrar nossos vistos aos guardas de fronteira — alguns países exigiam, de brasileiros. A verificação demorou, e enquanto tentávamos nos acomodar de novo um sujeito que era a cara de Ali Agca, o turco que em 1981 tentou matar o papa João Paulo II na Praça de São Pedro, forçou a porta da cabine e não o deixamos entrar. Falei para ele, sei lá em que língua, que a porra do trem estava vazio e que ele não tinha nada que ficar ali, que fosse dormir em outro canto. O sujeito saiu gritando num idioma incompreensível e foi embora. Não preguei mais o olho. Desembarcamos na estação de Saint Charles, em Marselha, com o dia já clareando, e dela me recordo de uma enorme escadaria que descemos com alguma dificuldade, e lá por perto mesmo encontramos um hotel ordinário e barato onde conseguimos pelo menos deixar as malas e tomar um banho depois de subir ao quarto num minúsculo elevador cheirando a Gauloises sem filtro — tinha cinzeiro no elevador e vi que as bitucas eram de Gauloises, sou o tipo de maluco que nota essas coisas e não esquece. Enquanto Thais se virava com o chuveiro, liguei a TV. E a primeira coisa que escutei foi uma moça brasileira cantando "chorando se foi/quem um dia só me fez chorar". Era Kaoma, no auge da lambada, num comercial de Orangina, um suquinho de laranja gaseificado muito popular na França. Instalados, arrebentados, com um sono fenomenal, precisávamos encontrar uma maneira de ir para o autódromo, que eu nem sabia onde ficava. Quando chegamos, notei que havia uma agência da Hertz perto do hotel e assim que ela abriu as portas, lá pelas oito da manhã, estávamos a postos para alugar um carro. Eu nunca tinha alugado um carro na vida. E não tinha cartão de crédito internacional. O meu era um American Express "valid Only in Brazil", mas quando o atendente me pediu um, foi o que dei. Ele olhou, passou na máquina — mecânica, que gravava os dados do portador num boleto de papel com carbono em três vias, uma do cliente, uma do estabelecimento, uma para a operadora —, pegou meu passaporte e falou: seu cartão não vale aqui, vou pegar o número só por garantia, mas o senhor tem de deixar uma quantia em dinheiro como caução, que vou devolver quando o senhor devolver o carro. Isso tudo em francês, e embora eu mal falasse merci, fiz que entendi tudo perfeitamente. E entendi o essencial, que era deixar a grana com o cara. Não lembro nem a quantia, mas não foi pouco. Uns 500 dólares, talvez. Deixei, não tinha alternativa. Pedi um mapa, e expliquei que tinha de ir a Paul Ricard. Ele rabiscou a rota e lá fomos nós. Não temos foto desse carro, infelizmente, e não lembro marca, modelo, cor. Uma pena. Porque ele nos levou direitinho ao autódromo pela estrada onde, anos antes, Frank Williams sofrera o acidente que o deixara paraplégico. Quando chegamos ao circuito, era quase meio-dia — hora limite para a entrega das credenciais que haviam sido confirmadas por fax dias antes. Sylvie Shannon, então responsável na FIA pela entrega dos passes, estava aflita, na porta da tenda diante do portão, me esperando. Era uma querida. Morreu em 1994 ou 1995 de câncer. E assim começou a minha primeira cobertura de corrida no exterior, o primeiro GP na Europa, com namorada a tiracolo, num calor danado, em um fim de semana marcado pelo anúncio, na sexta-feira, de que Alain Prost tinha decidido deixar a McLaren — algo que só fui saber no sábado de manhã. O francês venceu o GP, que teve também uma capotagem espetacular de Maurício Gugelmin na primeira curva, o abandono de Ayrton Senna com problemas de câmbio na segunda largada e a estreia de Jean Alesi com um surpreendente quarto lugar. Isso o que aconteceu na pista. Mas é gozado como a gente lembra de coisas aparentemente irrelevantes para o destino da humanidade quando abre as gavetas da memória. Nessa prova, cheguei à sala de imprensa como um completo desconhecido. Tinha feito, no autódromo, apenas dois GPs antes — ambos no Rio, em 1988 e no início daquela temporada. Não sabia como as coisas funcionavam, onde me sentar, como usar o telefone, como enviar uma matéria. Nada. Nada de nada. Pergunta daqui, pergunta dali, compreendi que poderia usar as máquinas de telex muito modernas, inclusive, mas teria de ser rápido. Boa parte dos jornalistas já usava computadores meio primitivos ou máquinas de escrever para enviar seus textos por fax. Mas telex ainda era bastante popular. Eram poucas máquinas, quatro, apenas, e muita gente precisava delas. Assim, sentei-me diante de uma delas e pedi para o cara me explicar como funcionava, porque o texto não era perfurado em fita de papel, como nas máquinas que tínhamos na Agência Folha, mas sim gravado num disquete daqueles flexíveis enormes, de oito polegadas — floppy disks, para os mais familiarizados com equipamentos de informática da época. "Escreve tudo, e quando acabar coloca esse disquete ali, aperta essa tecla aqui para gravar, tira o disquete, me entrega que eu envio", explicou o rapaz responsável pelo atendimento ao pessoal de imprensa. Ao meu lado, em outra máquina, estava um jornalista português, Artur Ferreira, que eu achava que era brasileiro. Pensava que era o Milton Coelho da Graça, de "O Globo", não sei bem por quê — ele tinha cara de Milton Coelho da Graça, sei lá. Artur não falava com sotaque de portuga. Na verdade, cidadão do mundo que vivia entre Portugal, Angola, Moçambique e Macau, além dos países por onde a Fórmula 1 passava, fotógrafo excepcional e repórter de texto também, sabia se expressar em "brasileiro" sem sotaque algum. Sujeito grande, alto, de longos cabelos brancos, uma figura. Não nos conhecíamos, mas percebi que era "brasileiro" ao ouvi-lo conversando com alguém. Fiquei na minha, escrevi minhas matérias, e lá pelas tantas o Artur pediu o auxílio de alguém porque não conseguia gravar ("salvar", meninos) seus textos no telex, e o bonitão aqui, querendo dar uma de gentil e prestativo, se ofereceu para ajudar. Afinal, tinha acabado de aprender: escreve, coloca o disco, grava. E fui direto no botão indicado para gravar, e o Artur se apavorou e gritou "não, já fiz isso, não, vai…", e foi. Vai foder tudo, era o que ele iria dizer, deu algum pau naquela merda e eu, em vez de gravar o texto, apaguei a porra toda. Todo o material que ele estava mandando para algum jornal de Luanda ou Maputo, sei lá, só sei que não era pouca coisa, os textos eram gigantescos, desapareceu. Da tela, do disquete, do mundo. Artur deveria ter quebrado meu pescoço ali mesmo, me pouparia de muitos dissabores futuros, inclusive, mas não o fez. Suspirou, olhou para a telinha do telex (era mesmo muito moderna, aquela máquina de telex, poucas coisas haviam me impressionado mais na vida até então do que aquele telex com tela que permitia voltar o cursor e corrigir uma palavra, ou frase) e furiosamente começou a escrever tudo de novo. Não me disse uma palavra. Eu fiquei mais ou menos uns cinco anos pedindo desculpas a ele. Grande cara, o Artur. Foi meu batismo no exterior. Naquele domingo, depois de mandar meus textos para a "Folha" por telex, entrei oficialmente de férias — nossa viagem por 12 países duraria um mês exato, sempre no esquema trem-hotel perto da estação. Na segunda de manhã, devolvi o carro na Hertz. O moço do balcão me entregou o dinheiro do depósito, que havia guardado num envelope, e perguntei se era só aquilo. Ele disse que sim, que o valor do aluguel seria cobrado no meu cartão de crédito. Mas é válido só no Brasil, eu disse, achando que teria de pagar alguma coisa ali mesmo. "Eles te acham", o rapaz falou, dando uma piscadela. A fatura daquele aluguel nunca chegou. Espero que não tenham cobrado do menino. |