Vamos forçar uma pequena barra aqui, com a clara intenção de atrair leitoras e leitores com um título maroto. Mas vocês hão de entender e, no final, talvez até concordem comigo. Quando Charles Leclerc deu na barreira de pneus na 18ª volta do GP da França, liderava a corrida com alguma folga e tinha uma boa chance de vencer pela quarta vez no ano, já que seus pneus estavam se comportando bem e a Red Bull fora obrigada a antecipar a parada de Max Verstappen porque sua borracha já dava sinais de esgotamento físico e mental. Na hora, lembrei de Ayrton Senna e do GP de Mônaco de 1988. (Mentira. Não lembrei nada. Mas depois, procurando um bom tema para esta coluna, uma digna fuga do óbvio, decidi mandar os escrúpulos às favas e recorri à memória do brasileiro, sempre campeão de audiência. "Às favas, escrúpulos!", disse para mim mesmo, na esperança de que eles, os escrúpulos, ouvissem. Não sei se os escrúpulos entenderam, ou se se ofenderam, já que há mais de uma explicação para a origem da expressão "mandar alguém às favas", e algumas delas são francamente agressivas. Gosto particularmente da que nos oferece o etimologista Iba Mendes, que diz: "Tanto os egípcios, como depois os romanos, não semeavam nem cultivavam favas, que consideravam um tipo de legume grosseiro, impuro e abominável. As favas serviam de estrume vegetal para as plantas menos nobres. Quando um mendigo ou um escravo pedia esmola aos ricos, era comum receber, como resposta, a seguinte expressão: 'Vá às favas!'". Pode-se substituí-la por "vá pentear macacos", também, mas prefiro favas, simpatizo com a crase antes delas. Fica ao gosto do freguês.) Senna, em seu primeiro ano de McLaren, ponteava a corrida do Principado com um ano de vantagem para o segundo colocado, seu companheiro Alain Prost. A 12 voltas do final, já pensando no que iria jantar naquela noite, bateu sozinho, bestamente, na entrada do túnel de Monte Carlo. Ficou tão pistola que nem para os boxes voltou. Pulou o guard-rail e, diz a lenda, foi a pé para o apartamento onde morava, a alguns quarteirões do local do sinistro. Ao abrir a porta, sua governanta, portuguesa, espantou-se: "Ó pá! Não estavas a correire?". Aquela batida, Ayrton diria sempre, até o fim da vida, foi um divisor de águas em sua carreira. Aquele negócio de manter a concentração sempre, nunca achar que uma corrida está ganha até a bandeira quadriculada, só acaba quando termina, coisas assim. Platitudes, mas ele tinha toda razão. Alguns erros fazem a gente crescer. Papo de coach ordinário, mas, de novo, às vezes até coachs (ou seriam "coaches"?) têm razão. Para Leclerc, a pancada de Paul Ricard — leve, mas que doeu na alma — teve um primeiro efeito imediato: o piloto passou horas se autoimolando diante dos microfones. "Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa", em bom latim. "Se eu continuar errando assim, não mereço ser campeão", desabou. "Se eu perder este campeonato por 32 pontos, sei bem quem terá sido o responsável, e não tem nada a ver com a equipe." Nessa conta, ele poderia colocar também a escapada em Ímola que lhe tirou valiosos pontos no GP da Emilia-Romagna. Estava em terceiro, a dez voltas do final, foi para a brita, acabou em sexto. Não é para tanto. Agora serei eu, o coach. Acontece, meu filho. Todo mundo erra, não precisa morrer por causa disso. Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. E você não vai perder o campeonato por 32 pontos, são 63 agora, a tendência é ficar por aí, um pouco mais, um pouco menos, concentre-se em ganhar mais umas corridinhas e está tudo bem. Sua hora vai chegar. Senna recebeu a lição, 34 anos atrás, mas não era infalível e perdeu pelo menos mais duas corridas na vida por bobeadas semelhantes. Na mesma temporada de 1988, foi ultrapassar o retardatário Jean-Louis Schlesser numa chicane de Monza e bateu no francês. Foi a única prova daquele campeonato que a McLaren não ganhou. E em Interlagos, no GP do Brasil de 1990, bateu bobamente em Satoru Nakajima quando estava prestes a colocar uma volta em cima do japonês. Era o líder, terminou em terceiro. Acontece. O mundo não acabou por causa disso. Claro que Leclerc deve estar, neste momento, afogando as mágoas em jarras de ki-suco (piloto não bebe, só Raikkonen). Talvez perca o sono por uma ou duas noites. Mas domingo, na Hungria, tem trabalho de novo. E, quer saber?, é ele o grande favorito à vitória na pista magiar. E se ganhar, subirá orgulhoso ao pódio, com um sorriso no rosto. E eu, do alto de minha recém-adquirida condição de coach, mandarei uma mensagem para seu celular: "Rien de tel qu'un jour aprés l'autre, mon garçon!". Ou, em bom português submetido ao tradutor do Google: nada como um dia depois do outro, moleque! PUBLICIDADE | | |