Desde o início dos tempos, 32 pilotos brasileiros largaram para pelo menos um GP de F-1. Foram quatro rapazes nos anos 50, com participações esporádicas, e mais 28 meninos contados a partir da estreia de Emerson Fittipaldi na categoria, no dia 18 de julho de 1970 em Brands Hatch. Ali, quando o Rato — seu apelido de juventude — se sentou na linda Lotus 49C de numeral 28, vermelha e dourada, começou uma longa sequência de décadas de GPs com pelo menos um brasileiro no grid. A sequência iria até o fim da temporada de 2017, quando Felipe Massa deixou a F-1. A série foi interrompida em duas ocasiões, apenas: no GP de San Marino de 1982, Nelson Piquet, Raul Boesel e Chico Serra não largaram, porque suas equipes aderiram ao boicote de alguns times à FISA, entidade que regulava a categoria; e, em 2017 mesmo, Massa não disputou o GP da Hungria por motivos de saúde. De lá para cá, os organizadores das corridas só precisaram providenciar uma fita cassete com o hino do Brasil duas vezes, nos GPs de Sakhir e Abu Dhabi de 2020. Foi quando Pietro Fittipaldi substituiu Romain Grosjean na Haas. O francês sofrera um fortíssimo acidente e nunca mais voltaria à F-1. (O protocolo das competições automobilísticas exige que hinos e bandeiras de todos os países participantes estejam à disposição para as eventuais necessidades — cerimônias de abertura e pódio, decoração dos boxes, essas coisas mundanas. As bandeiras hoje são eletrônicas, virtuais. Tremulam em telões de LCD. Os hinos, creio, dá para baixar no Spotify com um planinho daqueles sem propaganda e qualquer entrada USB resolve. A fita cassete foi licença poética minha, mas juro que muito tempo atrás, precisamente no ano da Graça de 1991, minha primeira visita a Silverstone, encontrei sem querer uma sala secreta no autódromo que por muito pouco não fez de mim um terrorista internacional. Naquele tempo, a FIA tinha um cabra qualquer que viajava para os autódromos com um crachá, sei lá, de Superintendente de Hinos e Bandeiras, ou algo do tipo. Era ele o responsável por comprar as bandeiras dos países de todos os pilotos e levá-las dobradinhas e cheirosas para as corridas. E, também, por arrumar gravações aceitáveis dos hinos dos mesmos países em fitas cassete. Elas eram transportadas numa caixa de madeira e as etiquetas eram toscas, escritas a mão em retalhos de fita crepe e pregadas nas caixinhas de acrílico. Minha ideia, quando vi aquilo, foi misturar fitas e caixas. Ou trocar por alguma que eu tivesse levado para escutar no meu walkman. Assim, quando Mansell estivesse no pódio para receber seu troféu e o locutor anunciasse o hino do Reino Unido, no lugar de God Save the Queen explodiriam nas caixas de som a voz da cantora do Kaoma cantando "chorando se foi/quem um dia só me fez chorar". Não tive coragem e minha carreira de terrorista terminou ali mesmo.) A última vez, pois, que a bandeira do Brasil apareceu num macacão no grid da F-1 foi no dia 13 de dezembro de 2020. Mas, na prática, o país está completando sua quinta temporada sem um representante regular na categoria. O que é quase chocante quando se trata de um país que acumula 101 vitórias, 126 poles e oito títulos mundiais ao longo da história. Sábado, Felipe Drugovich, 22 anos, conquistou o título da Fórmula 2. Que não é "mundial", como tenho visto e ouvido por aí em textos, áudios e emissões televisivas desde o fim da semana passada. É apenas a Fórmula 2. O campeonato não está listado entre os que a FIA ranqueia como "mundiais" — como o da F-1, da Fórmula E, de Rali e alguns outros. Não eram mundiais, igualmente, suas antecessoras — a F-3000 e a GP2. Portanto, Drugovich é campeão da F-2. Não é campeão mundial de F-2. Pode parecer um detalhe besta, mas não é. Só no Brasil o piloto tem sido chamado de "campeão mundial", em mais uma demonstração besta de pretensão típica de um país que, no esporte, é arrogante até não poder mais. Neste ano tem Copa do Mundo e veremos exibições de virilidade esportiva por semanas a fio, na linha do "só nós temos cinco estrelas na camisa" etc. O surfe e o skate parecem ter sido inventados em Maresias ou na marquise do Ibirapuera. Quando Guga ganhava torneios, éramos a pátria de raquete e não tinha pra ninguém. Uma chatice insuportável. Muito bem. O rapaz ganhou o campeonato em sua terceira tentativa, e tem sido celebrado em boa parte da imprensa e na quase totalidade das redes sociais com seus perfis infanto-juvenis ("Não sei quem da Depressão", "Fulano Mil Grau", "Turma Disso", "Galera Daquilo", "Massinha sei lá o quê", "Rosberguinho da Zoeira", coisas assim) como uma espécie de redentor do Brasil. Um novo Senna, ou Piquet, ou Fittipaldi. "Aqui é Brasil!", gritam as hashtags intragáveis. Com muito orgulho e com muito amor. Parece que, por ser um brasileiro o campeão da F-2, a F-1 tem a obrigação de arrumar um lugar para ele correr. Se não houver um cockpit disponível, é mais uma prova de que o Brasil é vítima de uma conspiração universal, o país mais injustiçado do mundo. Como assim? É NOSSO DRUGO, PORRA! Bom, Drugovich deve ser anunciado nos próximos dias como piloto reserva da Aston Martin. Só. Não vai correr em 2023. A não ser que Fernando Alonso ou Lance Stroll tenham uma dor de barriga. É ruim? Não, absolutamente. Eu diria que é até melhor do que a encomenda. Porque a F-2 nesta temporada não comoveu ninguém na F-1. Nenhuma equipe se estapeou por Drugovich como fizeram, por exemplo, Alpine e McLaren por Oscar Piastri. Nem por ele, nem por ninguém. E por quê? Porque Felipe venceu em sua terceira tentativa, não na primeira, como o australiano. Não é algo impressionante. Para muita gente no paddock, a experiência na categoria pesou mais do que o talento para que ele chegasse ao título. Drugovich fez um campeonato impecável, sim. Ganhou cinco corridas, só deixou de pontuar em três das 20 provas disputadas, fechou a conta com três provas de antecedência. Mas não teve adversários de grande qualidade. Não foi campeão porque massacrou todo mundo de modo cruel e implacável. Foi porque apostou na consistência, na inteligência, na regularidade, e porque nenhum piloto o ameaçou seriamente ao longo da temporada. Foi um ano fraco, resumindo. E a conquista, fácil. Como 2019, o do título de Nyck de Vries. O holandês foi campeão em cima de Nicholas Latifi. Não chega a ser uma façanha memorável. Só conseguiu estrear na F-1 neste domingo, depois de perambular três anos em provas de endurance e pela Fórmula E — sendo campeão, inclusive. E só teve a chance de correr porque Alexander Albon foi derrubado por uma apendicite. Aproveitou muito bem a chance, deve ser titular da Williams em 2023. Mas demorou. Isso tudo para dizer aos empolgadíssimos e carentes pachecos militantes de redes sociais que ser campeão da F-2 não promove ninguém automaticamente à F-1. A caminhada é dura e exigente. Para alguns mais talentosos, como Russell, Leclerc, Norris, Piastri, às vezes não precisa nem ganhar o campeonato. Basta vencer corridas, se atrelar a alguma equipe em programas de desenvolvimento, mostrar desempenho rapidamente, impressionar em tudo. E, depois, confirmar entre os adultos aquilo que, enquanto jovenzinho, não passa de promessa e aposta. Há dezenas de casos de pilotos que ganharam as categorias de acesso nos últimos tempos que acabaram chegando à F-1, mas não viraram nada. São 38 campeões desde 1985 — 20 da F-3000, 12 da GP2 e seis da F-2, incluindo Drugovich. Desses, 30 se sentaram num carro de F-1 em algum momento. Apenas oito venceram GPs. Dois foram campeões mundiais — Hamilton e Rosberg, antes que perguntem. É uma longa estrada. E ela não é verde-amarela. PUBLICIDADE | | |