Para entender o título acima, é preciso ser versado no mais sofisticado jogo de cartas criado pelo Homem, este compreendido como espécie, não um reles macho-alfa-cis. Refiro-me ao truco, cuja origem é incerta e desacredito de quase tudo que li na internet — a saber, praticado na Inglaterra desde o século XVII, popularizado na França e na Espanha no século XVIII, isso depois de ser levado muito antes à Europa pelos mouros (quando não tem muita convicção para atribuir a alguém determinada invenção, ideia, receita culinária, obra literária, cálculo matemático ou pensamento filosófico, todo historiador que se preza recorre aos mouros, sabendo que a aceitação da autoria é imediata; chineses também são muito utilizados nesse mister, especialmente quando se fala sobre a arte de empinar pipas, esmaltar vasos, modelar figuras de argila e usar a pólvora para explodir muralhas e fazer fogos de artifício). O truco, para não esticar muito o assunto e já mencionando de forma sumária a descrição contida em conhecidíssimos manuscritos apócrifos descobertos por arqueólogos britânicos na Mesopotâmia — onde se escavando tudo dá, de fósseis de mamute a mosquitos gigantes conservados em adereços de âmbar, de máscaras mortuárias persas a camisas do Corinthians usadas na final de 1977 autografadas por Zé Maria e Basílio —, provavelmente cruzou os mares em embarcações de vikings entediados muito antes de Colombo, atravessou as Américas depois de conquistar comanches e apaches, e ficou adormecido em algum ponto entre a Guatemala e o Panamá até renascer em alguma mesa de boteco em Piracicaba nos anos 50 entre garrafas escuras de Brahma e copinhos de cachaça de alambique. Tudo isso para chegar ao anúncio de quinta-feira (5), quando a empresa Andretti Global, comandada pelo ex-piloto Michael Andretti, revelou uma parceria com a vetusta marca Cadillac, que pertence à General Motors, fabricante do Opala e do Chevette, cujo objetivo é pleitear uma vaga no grid da Fórmula 1. O presidente da FIA, Mohammed Ben Sulayem — descendente de mouros, por óbvio —, apoia claramente a iniciativa e abriu recentemente um processo de seleção de interessados em ingressar na categoria. As equipes existentes, dez, são reticentes em aceitar novo membro no clubinho porque o bolo financeiro do campeonato terá de ser dividido em mais fatias e ninguém gosta de repartir o pão de ló com outros esfomeados. Por isso existe uma taxa de compensação de US$ 200 milhões para distribuir aos contendores, e comenta-se à sorrelfa que se o butim for aumentado para US$ 500 milhões podemos conversar. A F-1 já foi mais democrática e viveu momentos de exuberância lá pelo fim da década de 80 e início dos anos 90 do século passado, quando até 20 times se inscreveram no Mundial, povoando nosso imaginário infanto-juvenil com nomes como Osella, AGS, Rial, Onyx, Coloni, Euro Brun, Zakspeed, Life, Andrea Moda e Larrousse. Se me permitem, aproveito o ensejo para recomendar entusiasticamente o livro "Saudosas pequenas", de Rodrigo Mattar, que conta a história dessas equipes tão minúsculas quanto maravilhosas — a obra, editada pela Gulliver, pode ser comprada aqui. Ocorre que a última iniciativa para atrair novos competidores, em 2010, não foi das mais bem sucedidas. Ao final de 2008, a F-1 correu o risco de ficar com apenas nove equipes, após a falência da Super Aguri e a desistência da Honda. A Toyota também já dava sinais de que iria tirar o time de campo, o que de fato acabaria fazendo na temporada seguinte. Alarmado pela situação, o então presidente da FIA, Max Mosley, aceitou de forma atabalhoada as inscrições de três novatas que, na prática, nada acrescentaram à categoria, além de boas histórias para o folclore recente das corridas. Eram elas a inglesa Virgin, a espanhola HRT e a malaia Lotus — que de Lotus só tinha mesmo o nome. Se é verdade que todas tiveram vida curta — até 2016 já haviam encerrado suas atividades, depois de trocarem de donos e denominações —, não é menos verdade que foram a porta de entrada (ou de saída) para pilotos com algum currículo como Timo Glock, Bruno Senna, Daniel Ricciardo, Pedro de la Rosa, Jarno Trulli, Heikki Kovalainen, Jules Bianchi e Esteban Ocon. O último suspiro foi o campeonato de 2016, o derradeiro com 11 participantes, quando a Manor, ex-Virgin e ex-Marussia, baixou a sanfonada e encerrou as contas. Àquela altura, uma debutante mais sólida, a norte-americana Haas, garantia a dezena de inscritos que evitava o vexame de realizar um Mundial com 18 carros. Esse número se estabilizou desde 2017 e parece que a F-1 se acomodou com 20 pilotos no grid, rechaçando tentativas de aproximação de quem quer que fosse. E houve interessados, em que pese o fato de que os custos exorbitantes da categoria, por si, tratassem de afastar aventureiros — tem um louco do País Basco que todos os anos emite comunicado dizendo que está pronto para colocar seus carros na pista. Por anos o grupo Volkswagen, por exemplo, especulou uma entrada, o que finalmente se concretizou no ano passado com o informe de que Audi e Porsche se juntariam à F-1. Mas em formatos híbridos, que não ampliariam o grupo de participantes — a Audi se uniria à já existente Sauber, que hoje corre como Alfa Romeo, e a Porsche, apenas como fornecedora de motores. Como se sabe, o namoro entre a Porsche e a pretendente Red Bull não andou e a marca de Stuttgart não fala mais do assunto. As coisas entre a Sauber e o pessoal de Ingolstadt evoluíram bem e em 2026 as quatro argolas estarão na F-1 sem que a quantidade de equipes aumente. E chegamos novamente à Andretti, que dois anos atrás tentou comprar a mesma Sauber e na hora de assinar o contrato teve de engolir um recuo dos suíços. Michael insistiu e no ano passado, no GP de Miami, foi de equipe em equipe buscar apoio para ser aceito na irmandade, sem muito sucesso. Há alguns oponentes de peso, como Toto Wolff, da Mercedes, e outros nem tanto — Günther Steiner, o burlesco chefe da Haas, personagem preferido dos produtores de "Drive to survive", seriado da Netflix. Para conseguir uma carteirinha da confraria, é preciso unanimidade dos futuros pares. Andretti, pelo jeito, não se curvou diante das dificuldades. Além de iniciar a construção de uma fábrica nos arredores de Indianápolis, onde vai concentrar boa parte de suas operações automobilísticas — tem equipes na Extreme E (rali de elétricos), Fórmula E, IMSA, Indy, Indy NXT (a antiga Indy Lights), Supercars (da Austrália) e Super Copa (no México) —, foi atrás de alguém que pudesse impressionar a audiência quando chamado a expor seus planos em público. E assim retornamos gloriosamente à rodada final do truco de Andretti, que encontrou na GM e em seus cadilaques — aceitem a palavra de bom grado, é apenas uma substantivação das mais criativas, análoga a fordinho, gilete e cotonete — a mão perfeita para enfrentar a dupla que estiver à mesa querendo derrubar seu sonho de F-1. Pode até não ter o zap, a gente nunca sabe o que o adversário escondeu na frenética troca de sinais assim que o baralho foi cortado e as cartas, distribuídas. Mas já fez a primeira, tem copas para a última e Michael ficou de pé. Com copas no pé, meu filho, pode trucar. Eles vão correr. PUBLICIDADE | | |