Meu caro Flavinho, é assim que te chamam até hoje... Te vi esta tarde no Canindé. Meio acabrunhado quando chegou, porque a namorada não quis vir junto - ela é engraçada, veste a camisa e torce muito quando vem, mas se irrita comigo às vezes - e seus meninos, que já cresceram, têm vindo com os amigos, já não precisam que você os leve pelas mãos, te encontram na arquibancada ou lá fora tomando uma cerveja, bom... eles crescem, né? Você também cresceu. Assim é a vida. Lembro de você magrinho, mirrado, saindo de Campinas no ônibus da Cometa, descendo na antiga rodoviária da Luz, caminhando apressado até o metrô, saltando na Ponte Pequena (eu sei, agora chama Armênia), atravessando o terreno da Escola Técnica Federal com o maior cuidado para não sujar a calça branca, entrando pela rua da Piscina (eu sei, mudou de nome), parando na lojinha ao lado do portão de entrada, comprando um adesivo, um chaveiro, depois se juntando ao pessoal, olhando as meninas que saíam da piscina para ver o jogo, sonhando em se casar com todas elas, depois fazendo o trajeto de volta, terreno da Escola Técnica, metrô na Ponte Pequena até a Luz, caminhada à rodoviária, aquela das pastilhas, Cometa até Campinas, a mãe ou o pai te esperando, os seus cadernos com recortes, comentários, fichas técnicas, estatísticas... Eu era seu mundo. Lembro de você na beira da estrada esperando a caravana para te levar aos jogos em Jaú, Ribeirão Preto, Araraquara, Piracicaba, Limeira, Rio Claro... Você chamava de caravana mas era quase sempre um ônibus só, bege, da Benfica Transportes, e quando ele apontava na estrada você sorria e partia para uma jornada que seria sempre épica e inesquecível, uma viagem à Lua, a Marte, ao infinito. Lembro uma vez quando, na volta, te deixaram na estrada no meio da noite, e de você procurando um telefone para avisar seu pai que estava sozinho no meio da estrada, o local exato, a calça branca e a camisa vermelha, lembro que naquela noite depois de atravessar a estrada na escuridão absoluta encontrou ao longe uma luz frágil na portaria de uma fábrica, o porteiro noturno desconfiou de alguma coisa errada, difícil convencê-lo de que voltava da Lua, de Marte ou do infinito e precisava ligar para o pai, o número era 51-3145 e não era interurbano, e foi só assim que você conseguiu avisar seu pai, que já estava preocupado, o jogo era longe, você não chegava, era para ter sido deixado numa estrada, te largaram em outra, e um tempão depois disso tudo seu pai chegou com o Opala vermelho cupê, duas portas, e dizendo repetindo até chegar em casa, você é louco, que perigo, e só empatamos. Lembro de você com 13 anos entrando no Pacaembu pelo grande portão da praça, atravessando a arquibancada no meio da torcida do Santos - era com o Santos, o jogo —, levando umas lapadas de bambu nas costas, jogo de noite, você foi a pé para o estádio, seu pai jamais deixaria, mas ele estava viajando. Lembro de você fugindo dos corintianos pelo meio da rua no mesmo Pacaembu, um moletom sobre a camisa vermelha, mas a calça branca te denunciava, quem mais usaria calças brancas num estádio a não ser um membro da Leões da Fabulosa? Foi aquele jogo do pênalti no Enéas no último minuto, a torcida deles não deixou cobrar, derrubaram o alambrado, você tinha de encontrar seu amigo corintiano que iria te levar de volta para Campinas num Fusca bege, como é que vocês se encontraram? Lembro de uma noite você subindo a Augusta, o termômetro gigante do Itaú marcando 7°C, você tentando convencer seu pai que seria um bom jogo, que a viagem valeria a pena. Era com o Remo, do Pará. Foi 0 a 0. E lembro também de você saindo do Pacaembu - jogo de noite era sempre no Pacaembu, nossa casa ainda não tinha iluminação - para voltar a pé para casa, de novo, e quando passou pelo portão por onde entram os ônibus do time estava lá o Alcino, ele fez um gol do meio do campo, foi contra o América de Natal, e você falou "oi, Alcino", e ele respondeu, e foi o dia mais importante da sua vida. Lembro de você no Maracanã, lembro de você dormindo em cima das bandeiras na volta do Maracanã enquanto o metrô não abria, e também no Mineirão chorando de alegria, e no Olímpico chorando de dor, e em Recife escondido no quartel do batalhão do Choque, mas aí você já não era mais aquele menino mirradinho das calças brancas, já tinha até automóvel e andava de avião. Te vi esta tarde no Canindé, como te vejo sempre nesses lugares por onde tenho andado nos últimos anos, Indaiatuba, Sorocaba, Osasco, Barueri, Capivari, Guaratinguetá, Sâo Caetano, Guarulhos, Atibaia, e devo reconhecer, agradecida: você nunca me deixou. Nem você nem seus meninos, que vi pela primeira vez - poxa, quando foi? - eles eram bem pequenininhos, ficavam o tempo todo enroscados no seu pescoço, em noites frias e chuvosas, devo dizer que algumas vezes te censurei por ficar até tarde com os meninos no frio e na chuva, e você explicando um monte de coisas para eles, falando de mim o tempo todo, contando histórias, verdades e mentiras, e eles foram ficando tão apaixonados quanto você. Entraram no campo comigo, até! Só o mais velho, porque o mais novo era envergonhado e tímido e ficou agarrado nas suas pernas. Disso eu me lembro bem. Esta tarde, no Canindé, jogamos com um time que tem nome de equipe de Fórmula 1 - sei que você gosta dessas coisas das corridas —, que está na Série A - chamam de "elite" - e que tem filiais na Alemanha, na Áustria e nos Estados Unidos. Foi uma tarde redentora para você, para seus meninos, para todos que estavam lá. Bonita, mesmo. Uma hora dei uma espiada atrás do gol e você estava tremulando uma bandeira como quando tinha 17, 18 anos, os mesmos movimentos, o pé apoiado no degrau mais alto, a bandeira lá em cima, você sempre foi bom nas bandeiras, por maiores que fossem. Tentou os surdos, caixas e repiniques, não vingou, nunca teve ritmo. Mas nas bandeiras você sempre foi bom. Alguém tirou uma foto, foi como se voltasse no tempo 30, 40, anos, te vendo lá, magrinho e mirrado. O mastro de bambu, a bandeira em movimentos ritmados e elegantes, você não perdeu o jeito, é que nem andar de bicicleta, a gente não esquece. Naqueles tempos ninguém tirava fotos desses momentos, uma pena. Você iria gostar de se ver, magrinho, mirrado, a bandeira no alto em movimentos ritmados e elegantes. Ganhamos o jogo, do time da elite. Mostraram os gols no Jornal Nacional. Seus meninos, que estão grandes, te abraçaram como só te abraçam aqui, na nossa casa. Misturaram lágrimas com suor, te derrubaram no chão, até. Notei, pode ser que seja apenas uma impressão, mas notei, que eles ficaram orgulhosos de te ver tremulando a bandeira como fazia naqueles tempos que você, toda hora, conta para eles como eram. Semana passada, você também estava no Canindé e perdemos, e cometo aqui uma pequena indiscrição. Sei que quando terminou você ficou com medo, um medo quase aterrorizante, algo próximo a uma sensação de pânico, mas não falou para ninguém. Eu sei de tudo que passa na sua cabeça quando você vem aqui, e sei que semana passada você ficou com medo de que não ganhássemos nenhum jogo, ficou com medo até que não fizéssemos nenhum gol nunca mais, ficou com medo da tristeza dos seus meninos, que esperaram tanto tempo para voltar. Escrevo apenas para dizer a você que não precisa ter medo, não. Sempre que estiver aqui, ou em qualquer lugar, com essa cruz no peito, saiba que não precisa ter medo de nada, nunca. Nunca, nunca tenha medo de nada. Era só isso que queria te dizer, menino: nunca tenha medo de nada. Um beijo da sua Lusa querida. PUBLICIDADE | | |