Existe uma categoria de seres humanos que se pautam pela Fórmula 1 para quase tudo, e é a eles que me dirijo hoje. São pessoas que adotam um calendário particular (o ano de 2023, por exemplo, começa em 5 de março e acaba em 26 de novembro), permanecem inacessíveis em muitos finais de semana (serão 23 neste ano), consomem apenas produtos de alguma forma relacionados à categoria e possuem uma estranha maneira de recusar convites — "não posso, é Mônaco", disse um conhecido certa vez, quando foi chamado por um amigo para ser padrinho de casamento em cerimônia que seria celebrada no último domingo de maio, anos atrás. Confesso, com algum constrangimento, que já me comportei assim no passado, mas por razões mais práticas. Eu viajava para todas as corridas e, de fato, o último domingo de maio carregava sempre tal impedimento para determinados compromissos — era Mônaco. Da mesma forma, que não contassem comigo em muitos Dias das Mães ("é Ímola, ou Barcelona"), festas juninas ("desculpa, tem Montreal") e mesmo no meu próprio aniversário ("cai em Silverstone, se quiserem fazer bolo e chamar alguém, eu não vou poder ir"). Quanto aos bens e serviços estampados em carenagens de carros de F-1, igualmente já fui usuário bastante fiel, e é bem conhecida aqui em casa minha coleção de xícaras de café Segafredo, que expropriei por meios escusos de um restaurante em Faenza pelo simples fato de que era a marca que patrocinava a Toleman de Ayrton Senna. E não foi por outro motivo que, em 1994, comprei um Twingo — a Renault era campeã mundial, o que norteou a aquisição e, em 1996, me levou à revolta absoluta quando a montadora francesa anunciou que estava deixando o campeonato; até escrevi sobre isso na época, textinho bobo e pueril que pode ser lido aqui. Bem, a Ford voltou. E é aos meus semelhantes, àqueles que seguem vivendo em função da F-1, que, repito, dirijo-me hoje. A Ford voltou. E algo precisa ser feito a respeito. Minha primeira reação foi: um Corcel ou uma Belina? (Por enquanto, a Belina é prioridade. Explico adiante.) A dúvida, juro, eclodiu de forma instantânea sexta-feira, quando da apresentação da pintura do novo carro da Red Bull, em Nova York. Aproveitou-se o ensejo para se fazer o anúncio bombástico da parceria da equipe com a Ford. A fábrica está longe da categoria desde 2004, quase 20 anos, e o comunicado acabou sendo a única coisa importante da tediosa cerimônia, já que o carro mostrado não era o deste ano e a festa só serviu para a tradicional série de platitudes de chefes, CEOs, executivos e pilotos. Mas aí veio a história da Ford, e a Ford é a Ford, e se está voltando à F-1 algo precisa ser feito a respeito. Afinal, seus motores estão entre os três maiores vencedores de GPs de todos os tempos, só perdendo para Ferrari e Mercedes — são 176, para quem gosta de números. Nove pilotos conquistaram 13 títulos mundiais com o oval azul na tampa do cabeçote, entre eles Fittipaldi, Stewart, Piquet e Schumacher. A Ford não é qualquer uma. É a Ford, pô. Para os brasileiros doentes que fazem parte dessa confraria internacional movida a F-1 (ela existe, não estou brincando), porém, há certos fatores que dificultam o restabelecimento de relações com a marca norte-americana. O maior deles: a Ford deixou o Brasil. Como, então, comprar um Ford para ostentar orgulhoso seu lendário logotipo na grade dianteira? Foi em janeiro de 2021, há exatos dois anos, que a Ford resolveu encerrar sua produção por aqui, evento que chocou menos a sociedade do que deveria. Afinal, a empresa havia chegado ao Brasil em 1919, instalando-se no Centro de São Paulo para montar o histórico modelo T em sistema de CKD — o carro chegava aqui desmontado. Depois foi erguida a planta do Ipiranga e, mais tarde, nos anos 60, foram adquiridas as instalações da Willys Overland em São Bernardo do Campo, onde tudo acontecia: o ABC paulista. Lá já estavam a Volkswagen, a Chrysler e a GM, além da Mercedes-Benz e da Scania-Vabis com seus caminhões, e todo um parque industrial para produção de autopeças nascia no entorno dando um rosto e uma voz à região. As fábricas, imponentes, enchiam seus operários de orgulho e representatividade. Seu mais célebre rebento é hoje presidente da República. Eu mesmo — desculpem, a gente escorrega para a autorreferência nessas colunas metidas a crônicas — ficava fascinado sempre que, descendo a serra rumo ao litoral pela rodovia Anchieta, passava pela belíssima fábrica da Karmann-Ghia, que antecedia o colossal complexo de tijolos aparentes da Volkswagen, ambas do lado direito da estrada. Na volta, elas ficavam do lado esquerdo, funcionando sem parar, dias da semana, sábados, domingos, feriados. As chaminés, os caminhões-cegonha, as prensas enormes, os pátios lotados de carros de todas as cores, os trabalhadores com seus macacões de brim indo e voltando, aquilo tudo, aos olhos de um garoto de dez anos de idade, era o que se podia chamar de vida de verdade. E os letreiros? O V e o W dentro de um círculo azul gigantesco na fachada, e perto dali o monumental emblema da Karmann-Ghia no frontispício do interminável edifício em arco com milhares de janelas, atrás das quais eram feitos os mais belos automóveis do mundo, orgulho da engenharia e do design universais. Estou me desviando do assunto, voltemos à Ford e seu retorno à F-1, e à sua presença no Brasil. A Ford era uma das quatro grandes da indústria automobilística brasileira ao lado de GM, VW e, um pouco mais tarde, da Fiat, que se instalou em Minas Gerais. Famílias sonhavam com um Corcel, uma Belina, um Maverick. Quem chegava de Galaxie, Landau ou LTD era sempre o moleque rico da escola. Não raro eram conduzidos por motoristas empertigados. Depois vieram o Del Rey, o Escort, a turma da Autolatina (Verona, Versailles, Royale), e os mais novos devem se lembrar bem do Fiesta, do Ka, da Ecosport, fora as picapes da linha F. A Ford, bem antes, ergueu até uma cidade tipicamente americana no meio da floresta no Pará, nos anos 20 do século passado, chamada Fordlândia — para cultivar seringueiras, extrair o látex e fabricar sua própria borracha, já que tudo tinha de ser importado da Malásia. Para quem nunca ouviu falar dessa história, recomendo este documentário de 2008 do Canal Brasil e mais dois vídeos sobre o que restou da aventura amazônica de Henry Ford, aqui e aqui, além de um ótimo texto da BBC. Em janeiro de 2021, eu dizia, a Ford resolveu ir embora e fechou suas fábricas em Camaçari (BA), Taubaté (SP) e Horizonte (CE), onde produzia o notável jipe Troller. Nossa colunista Paula Gama esteve em Camaçari no mês passado e constatou que, pelo menos, a fábrica não está abandonada. Está em vias de ser comprada pela chinesa BYD, maior fabricante de veículos elétricos do mundo. Argh. Mais de 5 mil trabalhadores perderam seus empregos com a saída da Ford do Brasil. Dois anos antes do anúncio, em 2019, a montadora já havia desativado a fábrica de São Bernardo — dando um sinal do que estava para acontecer. Dos 218 mil veículos da marca vendidos no Brasil naquele ano, o volume caiu para 20.824 em 2022, todos eles importados — principalmente da Argentina. Hoje, a Ford tem ridículo 1,91% de participação no mercado brasileiro, ocupando a 14ª posição no ranking nacional. Uma tragédia. Agora, anuncia sua volta à F-1. Num modelo de negócio com a Red Bull muito bem explicado pelo colunista Fábio Seixas. A partir de 2026, os tempos de glória do oval azul na categoria, quem sabe, serão revividos na carroceria de carros feitos na Inglaterra por uma empresa que nasceu produzindo bebidas energéticas. E os malucos brasileiros que pautam suas vidas pelo ciclo de GPs têm de novo um motivo para colocar um Ford na garagem. Corcel ou Belina? Neste momento tendo para a segunda, visto que tem uma 1976 Amarelo Augusta me acenando todos os dias pelo celular. Mas acabei de cruzar na rua, num passeio dominical despretensioso pela vizinhança, com um cupê Marrom Canela 1972 de um conhecido que topa conversar. A Ford voltou, crianças. Corram para garantir o seu. PUBLICIDADE | | |