Prezado Vinicius, Conversando com um dos maiores expoentes de nossa cultura, há poucos dias, chegamos à conclusão que iríamos torcer pelo Liverpool na final da Liga dos Campeões, e não pelo Real Madrid. Afinal, como apoiar um time que, no passado, já esteve ligado ao franquismo? Mas emendamos com um porém: se a vitória dos merengues for com gol do Vinícius Jr, não iremos protestar. E assim ocorreu. Você suspendeu o tempo para milhões de corações apaixonados pelo esporte mais fascinante já arquitetado. Em Paris diante de um rei nas tribunas, num campinho em Roma entre garotos ou em São Gonçalo, de onde você vem, teu nome ecoa pelos continentes como se não existissem paredes para limitar teu impacto. Aos 21 anos, você tem o mundo aos seus pés. E é por isso que lhe escrevo um apelo, na forma desta carta. Ao contrário da velha máxima que questiona qual mundo vamos deixar aos nossos filhos, a verdadeira pergunta é outra: que filhos vamos deixar ao mundo? E você pode ajudar a moldar uma nova geração. Para milhões de garotos, você é a nova referência. Cada passe teu será copiado e ensaiado à exaustão por garotos no Senegal, na Suíça ou em Manaus. Assim como serão copiados e recebidos como inspiração cada declaração que você optar por dar. Teus pés não mais fazem apenas gols. Eles podem contribuir para mudar o mundo, Vini. Recuso-me a enxergar o estádio apenas como um local de entretenimento. Ele é uma caixa de ressonância da esperança, dos sonhos e mesmo da violência da sociedade. Não há motivo, portanto, para pensar que o esporte não possa ser um instrumento de Justiça social e de promoção de valores humanistas. Certa vez, almoçando com Ban Ki Moon, então secretário-geral da ONU, ele me dizia: uma mensagem de paz, de apoio aos refugiados ou de defesa da natureza numa abertura da Olimpíada tem um impacto infinitamente maior que qualquer campanha organizada pela ONU para convencer a opinião pública sobre aqueles valores. Vini, rapidamente surgirão vozes para alertar que não se pode contaminar o esporte por temas políticos. Mas esses que defendem essa tese são os mesmo que não querem ser questionados em seus privilégios hereditários. Também me perguntarão: é justo pedir isso tudo de um jovem jogador? Mas eu então respondo: não se pronunciar diante de injustiças, de atos racistas ou homofóbicos é apenas silêncio ou um ato político? Podemos construir um estádio para ser usado como palanque político para a elite local, mas não podemos usar suas arquibancadas para lutar por igualdade? Se teus dribles e imagem podem ser usadas pelo capitalismo para vender carros, cueca, desodorante, relógios e sonhos, por qual motivo ele não pode promover a ideia subversiva do direito à vida, à alimentação e à educação? Quanto tempo devemos esperar para que meninos se transformem em homens numa era em que vemos o acelerado desmonte dos pilares da civilização? Não me venham falar da necessidade de se manter a política afastada dos campos. Ela já está presente e atende aos interesses daqueles que controlam o jogo, daqueles que ditam as regras, daqueles que usam o futebol para se eleger deputado, vereador ou prefeito. Assim como no reggae e outras formas de arte, a luta por direitos está autorizada a ocupar todos os espaços. Sempre. E o futebol - global, popular e irresistível - passaria a ser muito mais que um esporte. Seria, no fundo, um ato de resistência contra a barbárie. Nesta temporada, você arrebentou. E não tenho dúvidas de que um futuro repleto de conquistas e pinturas de gols te esperam. Mas um gol de letra teu será aquele que alfabetize as consciências, que conquiste a cidadania. Dependendo da opção que você escolher para tua carreira, você não irá apenas chacoalhar as arquibancadas. Mas o inconsciente coletivo e as estruturas do poder. Meu apelo, Vini, é para que você rompa o silêncio cômodo de tantos jogadores que, para não se transformar em um problema ao clube ou ao patrocinador, baixam a cabeça e escondem no suor as lágrimas de um passado de sofrimento e sacrifícios. Atletas que mentem para si mesmos e que, longe da coragem da indignação de um Muhammed Ali, repetem que nunca foram alvos de racismo e não denunciam um regime econômico desumano que tanto marcou suas infâncias. Todos nós sabemos que a diferença entre alguns dos maiores jogador de todos os tempos do futebol e o maior atleta do século 20 não foi o número de títulos. Mas a atitude diante da humanidade e de seus irmãos oprimidos. Vini, não estou pedindo tua filiação a um partido e nem que inicie uma revolução. Apenas que use teu corpo, teu uniforme, tua vibração e teus gols para mandar uma mensagem a garotos de que a democracia precisa ser defendida, que a indignação não pode vir apenas no momento de um pênalti não marcado, que a união dos torcedores pode ser a união por dignidade, que o racismo é inaceitável, que a defesa do direito de cada uma das meninas é a garantia de uma sociedade mais justa. Se você optar apenas por jogar futebol, os troféus serão merecidamente teus. E, como ocorreu nestes últimos dias, te aplaudiremos de pé. Agora, se você optar por fazer a diferença numa sociedade carente de líderes, a conquista será de milhões de crianças que poderão não apenas sonhar com um futuro, mas sim construí-lo. Saudações democráticas, Jamil Chade PUBLICIDADE | | |