Prezado papa Francisco, O senhor certamente não se lembrará, mas viajei ao seu lado ao Brasil, em sua primeira missão ao exterior como pontífice. Naquele avião entre Roma e o Rio de Janeiro, o senhor brincou comigo e disse: não se preocupe, se o papa é argentino, Deus é brasileiro. Hoje, eu lhe escrevo com muita angústia. Será mesmo que Deus é brasileiro? Mesmo se não for, será que ele está de olho em como seu nome está sendo usado para cometer crimes no país? Sabemos muito bem que a história da religião está repleta de noites sangrentas. Sempre me chamou a atenção como um tirano escolhia a religião que adotaria em seu reinado com base nas alianças que gostaria de construir, no poder que almejava conquistar. Tratava-se de uma decisão geopolítica, depois transformada em decreto que obrigaria cada súdito a rever suas crenças mais íntimas. Se o cristianismo foi tão revolucionário ao dar espaço para mulheres e escravos naquele seu momento de nascimento da religião e tão rebelde por falar de igualdade, é perturbador como foram necessários quase 2 mil anos, escravidão, imperialismo, a aliança entre a cruz e a espada e genocídios em nome da fé para que alguns desses princípios se tornassem leis na Justiça dos homens. Quando me sento diante do Guernica de Picasso, sou tomado por uma profunda repulsa diante da "sacralización" do golpe de 1936 na Espanha, transformado em guerra santa. Foi necessário o abalo sísmico da Segunda Guerra Mundial para que a busca por sentido da vida reaparecesse na agenda política. Claro, enquanto o genocídio era negro, indígena ou simplesmente longe dos olhos dos centros de poder, isso não parecia uma urgência. Sua santidade, Hoje, no Brasil, vivemos mais um capítulo do sequestro da fé para fins políticos. Na busca por controle, vendedores de ilusões transformaram a aventura legítima de uma pessoa por um sentido na vida em instrumento de poder. Charlatães que vendem esperança como política pública, em troca de votos e dinheiro. Criminosos que, diante de uma era de incertezas que nos afeta a todos, recorrem a instrumentos de persuasão. Usam a fé para legitimar a discriminação, o racismo e a violação aos direitos humanos. A intolerância voltou a ser uma medalha que alguns carregam com orgulho no peito, inclusive por aqueles em postos de autoridade. Locais de oração foram transformados em palanques, enquanto armas se misturam com versículos da Bíblia. Sob o manto de Deus, a necropolítica é alçada a uma estratégia de poder. Não consigo evitar um sentimento de profunda frustração quando ouço hipócritas que falam em fé quando destroem sonhos, vidas e liberdades de meninas. De cínicos que colocam o nome "Mulher" na porta de um ministério. Querido papa, Passei meus fins de semana na infância entre as aulas dominicais, a quadra de futebol da igreja presbiteriana no centro de São Paulo e a orquestrinha que tentava animar os cultos. Não necessariamente nessa ordem. Mas tenho restrições profundas sobre alguns dos dogmas, da estrutura de poder e do tratamento que as diferentes versões do cristianismo conferem às mulheres e ao seu corpo. Sou consciente de que, mesmo com suas intenções de reconciliação depois de 500 anos de cisma na Igreja, as vertentes da fé ainda guardam suas autonomias e que a autoridade que o senhor dispõe também conhece fronteiras. Mas, ainda assim, sua influência é relevante entre os cristãos. Caso contrário, a Abin não teria feito um acompanhamento cuidadoso de seus encontros sobre o futuro da Amazônia. Com sua apurada consciência política e social, certamente o senhor sabe o que está em jogo nas eleições no Brasil. Certa vez, com Desmond Tutu em 2010, eu lhe perguntei de forma despretensiosa qual seria o time que o arcebispo escolheria para torcer, caso a fraca seleção da África do Sul fosse eliminada de sua Copa do Mundo, naquele ano. E a resposta do religioso foi tão malandra como profunda: "Vou torcer pelo Brasil. Precisa rezar menos", e soltou sua gargalhada inconfundível. Também gostaria de ter de rezar menos pelo Brasil. Mas, nas atuais circunstâncias, venho por meio desta carta solicitar que o senhor reze por nós. Outro dia, conversando com uma querida amiga vizinha do senhor em Roma —a escritora Juliana Monteiro—, descobri que rezo para não desistir. Se abrirmos mão da esperança apenas por ela ter sido sequestrada, a hipocrisia terá vencido. A oração, portanto, é parte da resistência. Mas, como o senhor tanto nos ensinou nesses últimos anos, a oração deve vir acompanhada por uma ação coerente. E, por isso, também lhe peço ajuda para que, com sua influência espiritual e política, amplie a difusão da compreensão de que os pilares do cristianismo são baseados no amor, dignidade e respeito, e não no ódio, na morte e na intolerância. Essa não é apenas mais uma eleição. Ela está mostrando quem somos. Em jogo está a sobrevivência de um projeto de democracia que, ainda incipiente, é o único caminho viável para garantir direitos a todos. Uma espécie de tradução de alguns dos conceitos revolucionários do cristianismo. Com muita admiração, lhe mando um abraço, uma outra forma de oração. Jamil PUBLICIDADE | | |