Caro Leo, Em 2010, escrevi para Eduardo Galeano sobre o fato de que, na concentração do time da Argentina na Copa da África do Sul, seus livros estavam à disposição dos jogadores para que os motivassem e criassem uma consciência subversiva de que, em campo, há muito mais que um jogo sendo disputado. Quando ele ficou sabendo disso, me respondeu: "O melhor livro de futebol é aquele que os jogadores escrevem com os pés. Como nasci perna-de-pau, e não sabia jogar direito, não tive escolha a não ser escrever sobre futebol. Não sei se meu consolo íntimo servirá para jogadores de verdade. Só peço que leiam como uma homenagem aos que jogando sentem alegria e a transmitem." Um artista como poucos em nosso Cone Sul, Galeano dizia que você era genial justamente por não se considerar um Messi. E que parte do encanto do mundo diante do teu jogo era justamente por você saber oferecer alegria. Naquele momento, confesso que desconfiei do entusiasmo dele contigo. Um sentimento meu ancorado naquele nacionalismo obtuso, típico dos medrosos. Mas, ao longo dos anos, entendi que Galeano tinha razão. Óbvio. Descobri, em minha casa, que você não é só argentino. Para meus filhos, você é Messi. E, hoje, eu apenas diria: sorte dos argentinos. Quando você entrar em campo, neste fim de semana, enfrentará a atual campeã do mundo, um time sólido e cheio de talentos. Provavelmente será tua última partida num Mundial. E o imponderável aspecto do futebol jamais vai te prometer um título. Enquanto a bola rolar, a vida —e a morte— serão suspensas no planeta neste domingo, nos diria o cronista. Mas antes que seja tarde e antes que a missa termine nessas novas catedrais do futebol, te mando esta carta apenas como uma forma de agradecimento. Uma gratidão por ter dado a tantas crianças - e adultos - pelo mundo o sentimento de que temos o direito ao devaneio. Gratidão por permitir que possamos destemidamente dizer que a vida é sonho. Um sonho em cada lance desconcertante, em cada gol improvável e em cada passe de mágica. Parafraseando Nelson Rodrigues, os demais jogadores fazem do futebol uma imitação da vida. Você vive de verdade. Em 1983, Carlos Drummond de Andrade escreveu que, "se há um Deus que regula o futebol, esse Deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios". "Mas, como é também um Deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho". O tal "novo que alimente o sonho" surgiu, desta vez do outro lado da fronteira. Também em um país repleto de desafios, mas traduzidos na síncope de um tango. Quando vejo a ilusão que você cria em línguas distantes, em culturas outras, ideologias inimigas e em religiões conflitantes, lembro do impacto que o futebol pode gerar e de como um artista tem sua função para além dos campos: a de confirmar a verdade incontornável de que a fantasia em nossas vidas não é um luxo, é nosso alimento. Por teus pés, torcedores pelo mundo superam as linhas artificialmente desenhadas no planeta, os nacionalismos manipulados e assumem tua camisa. Uns levam a roupa da marca oficial, orgulhosamente vestidos. Outros, como no Afeganistão, pintam seu nome em sacos de plásticos e os transformam em mantos com sua magia, orgulhosamente vestidos. Espelham em cada sorriso e nos olhos que brilham a constatação de que a humanidade só existe quando produz, compartilha, sente, vive e aplaude a arte. Gracias Leo, Jamil PUBLICIDADE | | |