Era ainda cedo e praticamente escuro. Eu e meus dois filhos corremos para conseguir entrar no ônibus que passava. Nenhum de nós queria esperar o próximo transporte no frio de Nova York que congelava nossas mãos. Tínhamos traçado um plano em casa. Eu ficaria no meio do caminho, na parada da ONU, e eles seguiriam até a escola sozinhos, mais ao norte da cidade. Como de costume, não conseguimos lugar para nos sentar no ônibus. Eu me agarrei nas barras, enquanto meu caçula se grudou em mim para manter o equilíbrio. E o calor. Entre um chacoalhão e o barulho perpétuo da cidade, ele levantou seu rosto e, do nada, me perguntou: "Papai, o que vai acontecer com a gente quando Trump começar seu governo?". Quando eu expliquei que achava que não tínhamos nada a temer, que vivíamos legalmente nos EUA e que não tínhamos cometidos crimes, seu coração parecia ter se acalmado. Ou pelo menos ele fingiu que acreditou. Naquele ônibus repleto de americanos de todas as origens e estrangeiros com o mesmo sonho americano, um breve período de silêncio se impôs em nossa conversa. Mas foi cortado, uma vez mais, por uma nova pergunta. Ele queria saber qual seria o destino de dois funcionários de sua escola, um equatoriano e um salvadorenho. Trabalhavam na cozinha e na limpeza do local. Jesus e Ivan eram, segundo ele, os únicos que sabiam alguma coisa de futebol e era com eles que comentava os jogos do fim de semana ou da rodada da Champions. Mas, a essa pergunta, eu não soube responder. De repente, como se eu tivesse colocado outras lentes, aqueles passageiros do ônibus pareciam ter outro destino, outro significado. Trump venceu prometendo a maior operação de deportação em massa da história e que, reforçando a crueldade dos "homens de bem", começaria a ofensiva atacando os locais de trabalho. Conseguiu colocar diferentes gerações de imigrantes uns contra os outros. Convenceu aqueles que já estavam no país há anos que era hora de fechar a porta para outros, sob a ameaça de que o sonho americano do primeiro grupo jamais se concretizasse. Quando o poder está tão distante e inacessível, as bases olham para seus vizinhos como inimigos. Mais recentemente, Trump instrumentalizou o ataque terrorista em Nova Orleans para justificar seu lema de campanha contra os estrangeiros. Antes mesmo de o mundo conhecer a identidade do autor do terrível crime, o presidente eleito foi às redes sociais para colocar a culpa nos estrangeiros. Horas depois, seria revelado que o homem tinha nascido no Texas e era um veterano do exército americano, ainda que de uma família de origem estrangeira. Conversando com outros estrangeiros nos EUA, notei que o medo em relação ao governo Trump não tem relação apenas com o que sua administração fará. Mas o que ele autorizará, de forma subliminar, ao inconsciente coletivo de uma nação repleta de ódio, dividida e armada. Temem que suas silhuetas - mesmo legalizadas - fiquem ainda mais tênues, até que se transformem em fantasmas numa sociedade refratária ao outro. A realidade é que Trump ameaça transformar o imigrante em uma condição crônica. Algo que terá de ser justificado de forma permanente. Não seriam mais aceitos por todos. Apenas tolerados. Dias depois daquele curto trajeto ônibus, me dei conta que eu menti ao meu filho. Ou a mim mesmo. PUBLICIDADE | | |