Depois de 69 anos como torcedor do America (sem acento) Football Club, escrevo esta carta como uma despedida, uma renúncia, um adeus. Virei casaca aos sete anos de idade, era torcedor do Fluminense, quando minha família — meu pai, mãe e irmã recém-nascida — mudou-se para a rua Afonso Pena, paralela à sede do America, onde também ficava o estádio de futebol na rua Campos Sales. Da varanda do pequeno apartamento de um prédio de três andares dava para ver enorme bandeira do clube hasteada junto a minúscula piscina. Antes de pegar o bonde que me levava para a escola no Centro da cidade, cumprimentava a bandeira com um leve gesto de mão. Era um pequeno ritual, como se desse bom dia a ela diariamente. A sede tinha piscina — que chamávamos de banheirão — , ginásio de esportes, salão de festas, bar que fazia cachorro-quente, a barbearia do Seu Joaquim, uma linda sala de troféus, salinha de cinema com cadeiras da Brahma, playground, e o mais importante: o estádio de futebol. Tudo pequeno, mas muito charmoso e bem cuidado. Ali treinavam e jogavam os meus heróis, meus craques inesquecíveis. E onde, nas manhãs de domingo, também, nós, crianças, jogávamos futebol quando o campo estava livre. do livro Tijucamerica, de José Trajano Certa vez (já morava um pouco longe dali) destruíram o campo de futebol e o levaram para o bairro vizinho do Andaraí, onde jogou por muitos anos o time do mesmo nome — aquele mesmo do Dondon, da música do Nei Lopes — , para transformar a sede em um mirabolante espaço de entretenimento para futuros associados, com quadras de tênis, piscinas e restaurantes chiques. Não foi a mesma coisa, nem de longe. O estádio no Andaraí tinha arquibancadas de ferro desmontáveis, distanciou a gente da Tijuca, tirou o clima, o brilho, a proximidade com os jogadores. E a tal sede, prometida como a mais moderna da América do Sul, virou enorme elefante branco, sem a maioria dos penduricalhos prometidos. Endividado, com o número de sócios derretendo, despesas absurdas com a tal sede, o jeito foi vender o imenso espaço no Andaraí para um shopping center e levar o campo para a Baixada Fluminense, em Edson Passos. Ali está o estádio Giulite Coutinho, nome do homem endinheirado já falecido, presidente de honra do clube, que teve a ideia e bancou parte da obra. O estádio é ajeitadinho, charmoso, mas são realizados poucos jogos lá. Sou nome da sala de imprensa do Giulite Coutinho. Ele é distante, apesar de ter estação de trem ao lado, mas está encrustado em local ermo, onde a população local mais próxima nada tem a ver com a história centenária do clube. Restou em Campos Sales um arremedo daquela sede grandiosa prometida há décadas atrás. Decadente, suja, pouquíssima frequentada, foi interditada pela Prefeitura. Surgiu a ideia de colocá-la abaixo e vender para a construção de um shopping, ficando a parte de cima do prédio como a sede social do clube. Faz dois anos e pouco que quem passa pela rua Campos Sales 118, onde estiveram o campo, a sede chique, a sede degradada, a história, enfim, do clube fundado em 1904, vê o espaço de mais ou menos 20 mil quadrados cercado por tapumes. E nenhum sinal de obra ou coisa parecida. Passei por lá este fim de semana e chorei. Ali, vivi os mais deliciosos anos de minha vida. Ia a pé, é pertinho, até o Maracanã ver nosso time jogar. E nossos times eram bons! Passar na sede diariamente era como se visitasse uma fábrica de chocolates e me lambuzasse à vontade. Na rua, junto aos tapumes, no sábado, um pequeno grupo de torcedores, vestidos com camisas vermelhas e portando bandeiras com o escudo do America, protestava. A maioria de cabelos esbranquiçados, já curvados pela idade, clamavam por dias melhores. "Queremos sede! Queremos time!", gritavam. Enquanto protestavam, passavam por eles, dando pouca importância à manifestação, uma imensidão de gente com camisas do Fluminense em direção ao Maracanã para se despedir do Fred. Todos felizes, peitos estufados e cheios de amor pra dar. Já era noite quando desci da casa de minha irmã, onde estava hospedado, para comer com minha mulher uma pizza no tradicional Caçador, em frente à praça Afonso Pena, onde morei na infância. Quatro velhinhos americanos, que estiveram no protesto, ainda estavam por ali tomando chope, quase em silêncio. Nas outras mesas, eufóricos, vários torcedores do Fluminense comemoravam o dia alegre e festivo que viveram. Um dos velhinhos me viu, reconheceu e veio ao meu encontro. Aí, perguntei: quanto foi hoje America x Sampaio Correa, pela Série A2 do Carioca? "Perdemos de 3 a 2. Não vamos subir mais uma vez para a série A", disse em tom melancólico. Diante disso, seguindo conselho do amigo Felipinho, dono do bar Madrid, decorado entre outros objetos com flâmulas, escudos e fotos do America, além de retrato emoldurado do Edu, nosso maior craque, me aposento como torcedor americano. Viverei de glórias passadas — mesmo tendo recebido linda camisa recente. Não quero mais saber de notícias de lá. Nosso passado foi espetacular, o presente é vergonhoso e o futuro não existe, infelizmente. Então, me despeço como torcedor do América, provisoriamente, quem sabe? Já sou velho para virar casaca, mas que dá vontade danada, isso dá! PUBLICIDADE | | |